- Há spoilers.
Para comemorar os 30 anos do terceiro e último capítulo da saga O Poderoso Chefão, Francis Ford Coppola decidiu revisitar o material base de seu tão incompreendido filme e lançar, com toda a pompa e circunstância, uma nova versão do filme, assim como já fizera antes com Apocalypse Now por duas vezes e também Cotton Club, isso se não contarmos com a versão épica que reúne os dois primeiros longas sobre Michael Corleone. No entanto, antes de abordar o longa propriamente dito, é importante já afastar duas das eternas reclamações daqueles que desgostam de O Poderoso Chefão III.
A primeira e mais comum delas é que a terceira parte, lançada 16 anos depois de O Poderoso Chefão II, “não é tão boa quanto as anteriores”. Óbvio que não é. Se um raio não cai duas vezes no mesmo lugar – e, aqui, ele caiu – três vezes então seria algo impensável. Mas o sarrafo comparativo não é com dois bons filmes que vieram antes, mas sim com dois dos melhores filmes da História do Cinema. Não é pouca porcaria. Portanto, não ser tão bom quanto as duas inegáveis obras-primas que o antecederam é, na verdade, um elogio. E um baita elogio, na verdade. É inegável que, mesmo com seus problemas – porque sim, eles existem – o doloroso final da história do homem que desde o começo não queria imiscuir-se nos negócios de família e foi obrigado a tanto, tendo que tomar decisões difíceis e terríveis, é espetacular seja pela atuação sóbria de Al Pacino no papel titular (basta assistir com atenção toda a sequência dele com o Cardeal Lamberto, vivido por Raf Valone, para que qualquer dúvida sobre isso seja dissipada), seja pela elegância e inevitabilidade como tudo é retirado de Michael, deixando-o idoso e sozinho em seus últimos anos de vida.
A outra grande reclamação é a atuação de Sofia Coppola, filha do diretor então com 18 anos e com experiência dramática extremamente limitada (e que, curiosamente, já havia aparecido nos outros dois filmes da série). De fato, ela destoa do restante do elenco e seu papel é muito importante, pelo que é mais do que evidente que qualquer uma das outras atrizes que foram cogitadas para ou cobiçaram o papel – Julia Roberts, Madonna, Rebecca Schaeffer e Winona Ryder – muito provavelmente teria resultado melhor. O nepotismo de Coppola tornou seu filme fácil de ser criticado, mas as críticas miradas em sua filha nove anos antes de provar-se uma grande diretora com As Virgens Suicidas, são rasas e a presença de Mary Corleone no longa de forma alguma o “estraga”. E, só para ficar bem claro, de forma a não alimentar expectativas: se você tem um problema sério com Sofia Coppola no filme, então ele continuará intacto na nova versão.
Ultrapassados esses pontos, o que Coppola fez em sua nova versão de O Poderoso Chefão III foi, inicialmente, reverter ao título que ele e Mario Puzo realmente queriam ter dado ao filme: A Morte de Michael Corleone. Apenas isso, sem referenciar O Poderoso Chefão. A dupla criativa sempre defendeu que, diferente do que o marketing da Paramount queria – e acabou ganhando – O Poderoso Chefão era uma duologia e que o terceiro longa era única e exclusivamente um epílogo. Pode parecer uma discussão acadêmica, mas não é, pois um epílogo é parte de uma história já contada e não uma nova história e só essa reversão ao título original já retira o peso psicológico que sempre fez muita gente torcer o nariz para o filme de 1990. A inserção da palavra italiana coda, no título original, deixa isso ainda mais evidente, pois ela significa “cauda” ou, em termos musicais, o final de uma composição, exatamente como um epilogo que, aliás, deveria ter sido a tradução para o português, isso se fosse mesmo necessário traduzir coda.
E quem esperava grandes modificações no longa ficará desapontado, se é que rever um filme desse quilate realmente desaponta alguém. O que Coppola cuidadosamente fez aqui, resultando em um longa levemente menor do que o original, foi alterar o tempo e distribuição do primeiro terço da narrativa e, na outra ponta, mudar o final. O miolo do filme permanece praticamente intocado, a não ser por levíssimas alterações no tamanho das sequências e algumas alterações na sincronização da trilha sonora. Só isso. Mais nada.
Mas é “só isso” mesmo?
Um grande diretor não mexe em filmes apenas por capricho e normalmente coloca na lata sua visão pessoal ou algo muito próximo disso (quando os estúdios deixam). Esperar alterações radicais em um longa escrito e dirigido por Coppola é, no mínimo, muita ingenuidade. Nem mesmo a inclusão da longa sequência onírica da plantation francesa em Apocalypse Now Redux teve esse condão. O que o diretor fez foi, em primeiro lugar, introduzir a trama central – a “compra” da participação majoritária da empresa Immobiliare, controlada pelo Vaticano – nos primeiro segundos da projeção, afastando uma certa impressão de falta de trama macro que o longa original de certa forma tinha. Do diálogo de Michael com o Arcebispo Gilday (Donal Donnelly) que abre a nova versão, partimos imediatamente para a festa em que ele comemora sua “medalha” papal, sem que sequer a cerimônia seja vista. Dessa forma, assim como a trama central é descortinada logo de início, a introdução de Vincent Mancini (Andy Garcia), filho bastardo de Sonny Corleone, é adiantada, trazendo para o centro das atenções personagem de extrema importância e que demorava a “aparecer” na trama.
Além disso, a própria festa ganha algumas alterações de passo e ritmo, por vezes até com uma montagem estranha, talvez um pouco picotada demais, de forma que, mais uma vez, a narrativa agora bipartite – Vincent de um lado e trama financeira de outro – possa continuar sem que se perca muito tempo com elementos desimportantes como é o caso da personagem vivida por Bridget Fonda. Essa solução minimiza – não resolve completamente – o ponto que para mim sempre foi o mais problemático no filme, que é a ascensão de Vincent Mancini dentro da família Corleone. Sempre reputei esse desenvolvimento muito… simples, ou talvez mal trabalhado mesmo, especialmente porque, proporcionalmente, Andy Garcia tinha pouco tempo de tela e uma entrada tardia. Coppola espertamente corrige o rumo de sua obra ao trazer Vincent para o foco logo de início.
E, com isso, podemos abordar o novo final. No original, vemos Michael Corleone, idoso, sentado sozinho em uma cadeira em uma casa antiga na Sicília, com cachorros em volta. De repente, então, ele morre, inclusive caindo da cadeira. Esse encerramento definitivo foi exigência da Paramount, que não queria deixar margem para dúvida, mas A Morte de Michael Corleone nunca foi a morte física do personagem, mas sim a espiritual. Sua primeira escolha foi tentar salvar sua família tornando-se o que mais detestava e que jurar nunca se tornar. Sua segunda escolha e a que marcou sua queda foi ordenar o assassinato de seu irmão Fredo. Essas suas escolhas simbolicamente o fizeram perder seu joie de vivre, sua duas esposas e, finalmente, sua filha. O epílogo de sua vida não poderia ser outro do que ser abandonado por todos, transformando-se em uma sombra do que ele fora. Sua morte física era completamente irrelevante.
E é isso que Coppola faz. Em A Morte de Michael Corleone, Michael não morre realmente. O filme acaba com um close-up para seu rosto envelhecido, depois de colocar os óculos escuros. Corta. Mas não acaba. O diretor faz questão de fazer breves considerações por escrito logo em seguida e eu não sei se isso era realmente necessário para a compreensão do que ele fez aqui. Na primeira frase, ele diz que o brinde cent’anni que Don Altobello (Eli Wallach) faz no filme quer dizer o desejo de que a pessoa brindada viva muito (se alguém não percebeu isso pelo significado óbvio de cent’anni, me desculpe, mas que falta de atenção…). Na segunda, ele nos relembra que sicilianos nunca se esquecem, bordão que é repetido algumas vezes ao longo da trilogia. Reunindo as duas coisas, temos que Michael Corleone viveu durante muitos e muitos anos sofrendo por sua culpa, suas escolhas e sua perda. É lindo e triste ao mesmo tempo, mas, como disse, talvez redundante e, portanto desnecessário.
O Poderoso Chefão – Desfecho: A Morte de Michael Corleone não é de forma alguma “outro filme” ou algo que mudará a vida de alguém, mas, se alguém tiver interesse em saber, eu, pessoalmente, tendo a preferir essa nova versão do que a anterior. Mas por muito pouco, tão pouco que minha nota em HALs para as duas versões seria a mesma. Coppola reajusta seu longa, transformando-o no epílogo que ele sempre quis fazer, rearrumando um pouco as peças do tabuleiro e entregando uma obra mais enxuta e ágil, com um final ainda mais doloroso.
O Poderoso Chefão – Desfecho: A Morte de Michael Corleone (Mario Puzo’s The Godfather, Coda: The Death of Michael Corleone – EUA, 2020)
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Mario Puzo, Francis Ford Coppola
Elenco: Al Pacino, Diane Keaton, Talia Shire, Andy García, Eli Wallach, Joe Mantegna, George Hamilton, Bridget Fonda, Sofia Coppola, Raf Vallone, Franc D’Ambrosio, Donal Donnelly, Richard Bright, Al Martino, Helmut Berger, Don Novello, John Savage, Franco Citti, Mario Donatone, Vittorio Duse, Enzo Robutti, Michele Russo, Robert Cicchini, Rogerio Miranda, Carlos Miranda, Vito Antuofermo
Duração: 159 min.