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Crítica | O Poder do Mito, de Joseph Campbell (com Bill Moyers)

Uma leitura densa sobre o potencial dos mitos e suas simbologias na formação das mais diversas sociedades.

por Leonardo Campos
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Transcrição de uma série de entrevistas entre o pesquisador acadêmico Joseph Campbell e o jornalista Bill Moyers, O Poder do Mito é uma publicação que explora a influência dos mitos na história, na cultura e na psicologia humana. Veiculado no Brasil em uma eficiente da editora Palas Athena, com tradução de Carlos Felipe Moisés, o clássico dos estudos mitológicos é uma leitura que ao longo de suas 272 páginas, apresenta ao leitor um universo vasto de conceitos e ilustrações sobre o potencial do mito como explicação para muitas questões não apenas das sociedades do passado, mas também da compreensão de muitas peculiaridades do contemporâneo. Não é uma leitura exatamente fluída e corriqueira, pois o autor investe pesado nas explicações de muitas passagens que podem não ficar devidamente palatáveis para qualquer leitor, mas ainda assim, é um material que deve ser contemplado por qualquer pessoa interessada não apenas em ficção ou conhecimentos gerais, mas entender nosso próprio contexto cotidiano, tecido por aspectos mitológicos discretos, nalgumas vezes, disfarçados.

Lançada em paralelo com uma minissérie para televisão nos Estados Unidos, na década de 1980, temos dentre as principais reflexões do livro, a Importância dos Mitos na Vida Humana, numa discussão do autor sobre como os mitos fornecem um sentido de significado e contexto para a experiência humana, ajudando a conectar as pessoas a grandes verdades e mistérios da vida, a análise comparativa entre mitos de diferentes culturas revela temas e arquétipos universais comuns a todas as tradições, mostrando a humanidade compartilhada, a famosa jornada do herói, um padrão narrativo encontrado em muitas culturas, destacando as etapas que o herói enfrenta, desde a chamada à aventura até o retorno com novos conhecimentos, uma interessante discussão sobre os ritos de passagem nas culturas indígenas e modernas, destacando sua importância na transição de uma fase da vida para outra e como influenciam a identidade individual e comunitária, com alguns trechos que recaem em essencialismos, mas ainda assim, são válidos como pontos de partida para debates e reflexões.

Além desses pontos, Joseph Campbell nos apresenta a relação entre mitos e religiões, enfatizando que, embora os símbolos religiosos estejam ancorados nas tradições mitológicas, eles têm um significado mais profundo e espiritual. Sobre a evolução, ele explica como os mitos evoluem e se adaptam ao contexto cultural e histórico, respondendo às necessidades e desafios de cada sociedade específica ao longo do tempo, traz o leitor para reflexões sobre a relevância dos mitos na era moderna e tecnológica, analisando como novas mitologias estão surgindo para substituir as antigas crenças tradicionais, aborda o complexo conceito de divindade interna, destacando a ideia de que cada indivíduo pode encontrar uma conexão com o divino dentro de si mesmo, em vez de buscar fora, expõe uma discussão sobre os mitos de criação e destruição em várias culturas, mostrando como eles ajudam a explicar as origens do mundo e os ciclos de vida e morte, além de examinar o papel do artista, do poeta e do contador de histórias como criadores e preservadores dos mitos. Aqui, estamos falando de cinema também, de televisão, etc.

Por meio de oito capítulos, o livro explora com paixão a importância e a presença dos mitos na cultura humana. Sobre a mencionada Jornada do Herói, Campbell ilustra a ideia de que mitos de diferentes culturas compartilham uma estrutura comum, hoje muito popularizados na tal jornada, estruturada por arquétipos que retratam a aventura de um herói que deixa o mundo cotidiano, enfrenta desafios e retorna transformado, criando a base para Christopher Vogler tecer o seu memorando A Jornada do Escritor, posteriormente transformado em livro, uma bússola para muitos roteiristas e escritores ainda na atualidade. No capítulo O Mensageiro, há uma ênfase na importância dos rituais e do simbolismo religioso, destacando como os mitos religiosos fornecem um sentido de conexão com o transcendente e ajudam a compreender nossa existência. Em Primeiras Histórias, Campbell discute os mitos das culturas indígenas e suas formas de explicar o mundo natural e social, bem como a sabedoria espiritual profunda contida nessas narrativas.

Mais adiante, em Sacrifício e Bem-Aventurança, ele aborda a necessidade do sacrifício na evolução espiritual e no desenvolvimento pessoal, relacionando isso a histórias mitológicas de várias culturas. No interessante O Amor e a Deusa, o autor explora as mitologias em torno da deusa e o papel do feminino nos mitos, bem como a ideia do amor romântico e seu significado profundo. No curioso capítulo Máscara da Eternidade, discorre sobre a essência do mito em se conectar com o eterno, mostrando como as máscaras e os rituais nos permitem tocar uma dimensão além do tempo e do espaço. Em Eternidade e Tempo, analisa a forma como os mitos lidam com a questão do tempo, do eterno retorno e da conexão entre o temporal e o eterno. Concluindo o livro com O Dom da Graça, reflete sobre a realização pessoal e espiritual, o reconhecimento do divino dentro de nós, e como os mitos podem guiar-nos nessa jornada pessoal. Como dito antes, em O Poder do Mito, Campbell argumenta que, independentemente da cultura, os mitos desempenham um papel crucial em nossas vidas, ajudando-nos a enfrentar desafios, buscar significados mais profundos e conectar-nos com algo maior do que nós mesmos. Ao destacar a universalidade e a importância contínua dessas histórias atemporais na experiência humana, ele assume uma postura corajosa de fixação de um padrão criticado por muitos.

Tal como O Herói de Mil Faces, as ideias de O Poder do Mito não foram (e nem devem) isentas de críticas. Por mais que seja tentador, há uma universalidade excessiva atribuída por Campbell aos mitos. Podemos argumentar isso ao refletir que Campbell tende a generalizar demais, negligenciando as particularidades culturais e históricas que moldam os mitos e as sociedades. Mas, nenhum estudo é tão exato e perfeito, por isso, devemos seguir o que sempre menciono sobre a leitura crítica e com distanciamento, sem negar as ressonâncias de suas ideias como base importante para os estudos dos mitos, evitando, no entanto, generalizar, isto é, aceitar tudo sem questionamentos. Ao retratar os mitos como uma narrativa monolítica que transcende as fronteiras geográficas e temporais, nalguns momentos o autor tende a simplificar em demasiadamente a complexidade e diversidade das práticas mitológicas. O que isso quer dizer?

Basicamente, os riscos de homogeneizarmos as ricas peculiaridades presentes nos mitos indígenas e tradicionais, por exemplo. Além disso, há uma tendência de Campbell de interpretar os mitos de forma essencialista e psicologicamente redutiva. Ao insistir na existência de um “monomito” subjacente a todas as narrativas mitológicas, ele pode minimizar a riqueza simbólica e polissemia presentes nas histórias mitológicas. Isso me faz lembrar a época da faculdade em Letras, quando líamos algumas de suas considerações em algumas disciplinas, juntamente com abordagens críticas que argumentavam ser essa postura do autor uma maneira de impor uma estrutura interpretativa rígida que não leva em consideração a complexidade das crenças e práticas culturais específicas de cada sociedade. E pensa que acabou? Não. Outro ponto de crítica considerável é a acusação de que Campbell subestima a importância do contexto social, político e histórico na criação e interpretação dos mitos.

Ao se concentrar principalmente nos aspectos universais e psicológicos dos mitos, ele pode negligenciar o papel fundamental que o contexto desempenha na formação das narrativas mitológicas. Críticos argumentam que essa abordagem descontextualizada pode “obscurecer” as lutas, contradições e poderes desiguais que moldam as histórias mitológicas. Ademais, há apontamentos que indicam a idealização dos mitos como uma fonte inquestionável de sabedoria e transcendência, pois ao passo que o autor retrata os mitos como um caminho direto para a verdade última e a realização espiritual, ele pode minimizar os aspectos ambíguos, contraditórios e até mesmo violentos presentes em muitas das narrativas mitológicas. É uma perspectiva de contraponto que destaca a necessidade de uma análise mais densa e contextualizada dos mitos, reconhecendo tanto suas potencialidades transformadoras quanto suas limitações e ambiguidades. Mas esse é um estudo tão complexo que podemos compreender perfeitamente as limitações humanas de Joseph Campbell ao traçar ideias oriundas de décadas de investigação.

Convenhamos, no entanto, que mesmo diante das críticas, o seu legado e impacto cultural é duradouro. E ainda muito, mas muito, insisto em dizer, demasiadamente presente na mesa de muitos dramaturgos, escritores da contemporaneidade. Ao longo do século XX, muitos criadores de histórias e seus realizadores tradutores de ideias do papel para as imagens incorporaram conscientemente os elementos da jornada do herói, dentre outros conceitos “campbellianos” em suas narrativas. A saga Star Wars, de George Lucas, é uma ilustração. A jornada de Luke Skywalker para se tornar um Jedi e derrotar o Império Galáctico segue de perto os passos do herói descritos por Campbell, cativando gerações de fãs e estabelecendo-se como um marco na história da ficção. Além da jornada do herói, os estudos de Campbell sobre mitos e arquétipos contribuíram para a compreensão mais profunda da natureza humana e dos conflitos universais presentes nas histórias, como as narrativas de J.R.R. Tolkien (O Senhor dos Anéis) e da controversa J.K. Rowling (Harry Potter), autores que exploraram a riqueza dos arquétipos e símbolos mitológicos em seus mundos fictícios.

As ressonâncias das ideias de Campbell não ficam apenas nesses dois exemplos. Temos Matrix, O Rei Leão e A Origem como alguns casos de narrativas que aderiram aos temas e padrões encontrados em mitos antigos. E mais. É importante ressaltar que a influência de Campbell não se limita apenas à ficção tradicional. É uma tendência no âmbito dos videogames, a adoção cada vez mais frequente, de elementos narrativos inspirados pelos estudos mitológicos, estratégias que ofertam aos jogadores, experiências imersivas e complexas. God of War e The Legend of Zelda, bastante populares, exploram mitos e arquétipos de maneira inovadora, levando a narrativa interativa a novos patamares de sofisticação e profundidade. Em sua abordagem holística e universal dos temas mitológicos, Campbell forneceu aos escritores, cineastas e criadores de histórias ferramentas poderosas para identificação, expondo os chamados conflitos universais, em um legado perdura no tecido das narrativas contemporâneas, enriquecendo e inspirando gerações de artistas a contar histórias que transcendem o tempo e o espaço.

O Poder do Mito é, em linhas gerais, uma excelente leitura. Para cultos ou curiosos.

O Poder do Mito (The Power of Myth) — EUA, 1986
Autor: Joseph Campbell, Bill Moyers
Tradução: Carlos Felipe Moisés
Editora: Palas Athena
272 páginas

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