O delicado filme protagonizado pelo sempre excelente Tom Hanks mergulha, por meio de uma narrativa que trabalha com sentimentos mistos, numa jornada que é sobretudo da descoberta, do reconhecimento mas também da finalização e da aceitação do status inalterável do fim de tudo o que há – isso no percurso atravessado por uma atmosfera de enfado típica de alguém que, segundo ele mesmo, já não tem mais nada para viver. Aproximando-se das comédias francesas proto-existencialistas, como as de Denys Arcand, Marc Foster faz do seu personagem um típico entediado, aborrecido e infinitamente chato, mas sem perder a mão na complexidade que carrega esse a que chamam de “pior vizinho do mundo”. O caminho é uma jornada imperdível por emoções que nos faz refletir sobre a importância dos laços e das relações pessoais que travamos ao longo da vida.
Otto (Tom Hanks) é um viúvo que, sem filhos, mora sozinho numa casa localizada num bairro residencial fechado. Com fama de rabugento e pavio curto, acaba indiretamente como “presidente” da associação de moradores, mesmo tendo sido deposto devido ao seu humor sempre peculiar. Ao mudar uma família mexicana para uma residência ao lado, Otto se vê numa encruzilhada ao ter de, forçadamente, socializar com os novos moradores, que paulatinamente acabam mudando os rumos finais de sua vida, trazendo novas experiências e possibilidades antes nunca cogitadas por ele. O Pior Vizinho do Mundo, adaptação do romance Um homem chamado Ove e readaptando o aclamado filme sueco de nome homônimo ao livro (Hannes Holm, 2017), embora seja uma releitura da releitura da trama, tem material o suficiente para nos fazer rir e chorar em iguais proporções, provocando reflexões sobre a esperança, o amor, a amizade e a vida com muita consistência e beleza.
É evidente que o longa-metragem apoia-se no sentimento de luto para provocar efeitos de melancolia, valendo-se da montagem como estratégia narrativa do drama. Embora o filme se passe no presente da enunciação, ocorrem cortes que retomam, por meio da memória de Otto, a esse belo passado a longo e curto prazo que ele construiu com sua esposa. Reconhecemos, e temos de reconhecer, que o argumento é bom e consequentemente o roteiro é bem trabalhado. A pergunta que corrói o personagem e a nós é simples: o que sobra de mim depois de perder tudo aquilo que me moldou?
Após perder sua esposa, Otto passa por um profundo luto, que de certa forma é em dose dupla: ao mesmo tempo em que perde a amada, ele perde a si mesmo, perde a pessoa que era quando ela ainda estava viva, porque, afinal, muito do sentir-se bem quando se está apaixonado relaciona-se ao fato de conseguir extrair a nossa melhor versão de nós mesmos – por isso a satisfação pessoal, sobretudo. Quando Otto realiza que não a tem mais, além de enlutar pelo amor perdido, o personagem acaba perdendo o sentido da vida, porque todo o sentido de viver e de ser aquela pessoa específica que ele era estava ligado à presença viva da sua esposa, que agora não existe mais – e então é como se uma parte dele tivesse sido jogada fora. Esse é um dos ciclos do luto, por isso é tão difícil trabalhá-lo, pois além da necessidade de quebrar os laços com a pessoa que se foi, consiste em refazer a si mesmo. O arco dramático sabe enredar esse processo na trajetória do filme e sem ser apelativo, mas genuíno, o longa coloca na conta de Tom Hanks todas as fases emocionais da obra, e o ator entrega uma atuação segura ao seu melhor estilo.
Embora comédia, não passa de uma dramédia, ou uma comédia trágica. Pelo ritmo da película, sabemos que o final vai acabar do jeito que acaba, mas o importante não é o final, que é um plot esperado, mas o caminho que a película leva até a esse fim. As inúmeras camadas de Otto dão densidade ao enredo e explicam as razões internas do personagem ser um chato aborrecido, além da vivência com cada vizinho e de sua relação com cada um explicar bastante da sua personalidade. De algum modo, ele está cercado por um mundo de idiotas, que tomam atitudes e decisões duvidosas, e ele, no auge da sua terceira idade, está socialmente cansado de gente que não sabe estacionar o carro, que não fecha a porteira do condomínio, que não coleta as sujeiras do cachorro da rua etc. Isso justifica um outro aspecto do filme: os personagens caricatos. Eles são ridicularizados ao máximo para expor, a não deixar dúvidas, que as pessoas são imbecis – e que isso enche o saco.
Algumas mensagens ficam claras, como a nossa necessidade social do outro, isto é, que não dá para viver sozinho, amargurado e ter qualidade de vida. Uma hora ou outra alguém vai nos estender a mão e precisaremos dessa mão estendida para continuar nossa jornada por mais imperfeita e irregular que seja. Otto erra num impulso egoísta ao se julgar independente num mundo em que dependemos do outro, mas logo se corrige, e esse é o seu grande triunfo, afinal, aquele que se corrige no meio do erro e se percebe errante é menos tolo e sente menos culpa. É linda a metáfora do problema do miocárdio hipertrofiado, doença adquirida geneticamente de seu pai, isto é, problema que causa o inchaço do seu coração. Não ironicamente, Otto tem o “coração grande demais” e isso vai se mostrando ao longo da película, por mais emburrado que seja.
Ao fim, Otto torna-se um alguém próximo a nós, alguém que aparenta ser um conhecido ou mesmo um vizinho querido; um ser humano que ensina e, apesar da velhice, aprende e reaprende valores fundamentais que nos tornam humanos. Um filme que trabalha a partir da simplicidade de tudo, sem mais exuberâncias que não o narrar extenso da vida melancólica de Otto, essa comédia da vida cotidiana nos inspira à compaixão e, embora dramática, nos enche de esperança pela possibilidade de que mesmo no fim a beleza ainda é possível.
O Pior Vizinho do Mundo (A Man Called Otto, 2022, EUA)
Direção: Marc Forster
Roteiro: David Magee (baseado no romance A Man Called Ove)
Elenco: Tom Hanks, Truman Hanks, Mariana Treviño, Rachel Keller, Manuel Garcia-Rulfo, Cameron Britton, Mack Bayda, Juanita Jennings, Emonie Ellison, Peter Lawson Jones, Laval Schley, Christiana Montoya, Alessandra Perez, Mike Birbiglia, Kelly Lamor Wilson, David Magee, John Higgins
Duração: 126 min.