A linguagem cinematográfica, no curta-metragem O Pão e o Beco, é utilizada essencialmente como um meio para comunicar contrastes. Logo de início, temos um garoto pobre que brinca de jogar bola (por bola, leia-se: lata) ao mesmo tempo em que ouvimos uma animada canção dos Beatles em versão instrumental. Está exposta então uma realidade dura, suavizada pela “fome de brincar” do menino — e comentada, ironicamente, pela canção dos Beatles. O diretor Abbas Kiarostami utiliza-se dos recursos cinematográficos que estão à sua disposição para comunicar, sem deixar-se cair na “prisão do diálogo”. A câmera segue o personagem pelas ruas, e não se preocupa em estilizar a pobreza ou fazer comentários complexos através da mise-en-scène. Não. A simples trajetória do personagem é o que nos conduz – e também o que cria significados.
Dito isto, é importante destacar que, enquanto o menino caminha pelas ruas, tudo e todos passam por ele — passam no sentido mais cruel da palavra: passam com indiferença. E o menino, e sua pobreza, e sua ingenuidade, são pisoteados pelos transeuntes. No fim das contas, é o diretor e sua câmera — além de nós, espectadores, é claro — que se preocupa em observar aquele menino de perto. A beleza do filme reside justamente aí: pode parecer que não, mas há alguém que enxerga o pobre personagem. E, quando paramos pra pensar que dentro deste universo do “alguém observando” estamos nós… tudo se revela ainda mais belo e poético.
Temos, além do menino, outros dois personagens de destaque. São eles: o velho que o menino passa a seguir pelas ruas e o cachorro que, logo nos minutos iniciais, assusta a pobre criança. Pois vejam só, o cachorro também não lhe é indiferente. O velho, ah, esse é. Ele nem sequer percebe a presença do menino. Ficam as questões: o quão desumano pode ser o ser humano? E o quão humano pode ser quem não é, nem nunca será, humano? O cachorro só assusta o menino porque se importa com ele. Mas, assim como o menino vê o velho que ele segue fechando a porta de sua casa, com indiferença; o cachorro vê a porta da casa do menino se fechando diante de seus olhos.
Mais uma questão: quando quem sofre com a indiferença mostra-se capaz de ser, também, indiferente, o que sobra da humanidade? Do lado de fora, o outro é sempre desimportante.
Assim, Kiarostami finaliza o filme. A narrativa, aparentemente simples, revela-se complexa e cíclica: o cachorro, do lado de fora, encontra outro menino para assustar. A rua é mais assustadora do que aparenta ser — e não é por causa do cachorro.
* Texto escrito no dia 10/06/2016 durante a Oficina de Crítica do Festival Varilux de Cinema Francês, sob orientação de Jean-Michel Frodon.
O Pão e o Beco (Nan va Koutcheh) — Irã, 1970
Direção: Abbas Kiarostami
Roteiro: Abbas Kiarostami
Duração: 10 min.