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Crítica | O Pão (1959)

por Bruno dos Reis Lisboa Pires
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  • Texto baseado no corte do diretor lançado em 1964.

Manoel de Oliveira está em um patamar muito específico na história do cinema, um autor capaz de passear entre os trabalhos independentes, publicitários ou institucionais sem perder sua identidade. Como de costume na carreira do diretor, este documentário foi uma encomenda feita pela Federação Nacional dos Industriais de Moagem, que solicitaram ao cineasta um registro da produção portuguesa de pães. Este tipo de ordenação costuma dar amarras ao artista, que deve limitar-se aos pedidos de seu mecenas. No entanto, esse média-metragem não perde em nada para os curtas anteriores de Manoel, que esmiúçam a vida urbana com ênfase na experimentalidade de suas imagens.

Mesmo tratando-se de um filme encomendado, pode-se dizer que o trabalho dialético de montagem do diretor nunca esteve tão aguçado quanto aqui. O registro da produção vai desde a colheita do trigo até o transporte, comércio e uso do alimento, uma jornada supostamente simples cujas imagens, caso não estivessem à disposição de um gênio, seriam as mais entediantes. É importante dizer que o filme original constitui-se de 58 minutos, com trilha sonora e narração descrevendo o processo de produção, mas em 1964 foi cortada pelo próprio Manoel de Oliveira para uma versão reduzida de quase meia hora, contendo apenas imagens e diálogos, sendo essa a preferida pelo diretor. Essa decisão é extremamente sensata, já que derruba um suposto didatismo e privilegia as imagens, que são o principal condutor desse monumento, cujo fluxo pictórico traz sentido à própria manufatura do pão.

Esses planos fechados, sem a necessidade de qualquer interferência externa – senão o corte – revelam o grande sentido estético do filme: o contraste. O incrível é como um filme baseado nas diferenças entre planos pode soar tão fluído? Planos que se abstraem uns dos outros, que descrevem singularmente cada uma das atividades envolvendo o pão de forma isolada, mas que ainda aplicam-se a um sentido coletivo. A oposição entre o novo e o velho, ideia aplicada desde o princípio de sua carreira, adquire aqui a essência da tradição, revelando a modernidade que Portugal caminhava, duelando imagens artesanais e industriais, agricultores que logo são substituídos pelas máquinas agrícolas.

O fim não deixa de ser plural, o pão que vai aos ricos que exibem sua gula às câmeras, veio do mesmo lugar que são trazidas as hóstias da missa. O que nunca deixará de estar presente em cena é a marca humana, que diante da modernização, adapta-se, recria-se, não abaixa a cabeça frente ao descontrole do progresso que não está nas mãos do agricultor. O pão é unificador, já que todos desfrutam. É um símbolo do futuro utópico que une a tradição ao moderno. O que está por vir é uma marcha violenta e industrial, não por menos Guernica aparece próximo ao fim do filme. O futuro é violento e imprevisível, uma ventania que atravessa os campos de trigo.

O Pão — Portugal, 1959/1964 (corte do diretor)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira
Duração: 58 minutos (versão original), 29 minutos (versão do diretor)

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