Nas artes, a máxima científica de Lavoisier que diz que no mundo nada se cria, tudo se transforma ganhou uma versão ainda mais direta, que afirma que nada se cria, tudo se copia. E, de fato, essa é uma grande e absoluta verdade, algo que pode ser conjugado com o ditado de Isaac Newton que, olhando para trás, reconheceu a importância dos que vieram antes dele, asseverando que, se ele viu mais longe, foi porque estava sobre ombros de gigantes.
Robert Jordan começou, em 1990, o que acabaria sendo um gigantesco épico literário de 15 tomos apoiando-se nos dois ditados acima sem nenhuma vergonha de ser feliz, como fazem os melhores autores. Reconhecendo a importância da Jornada do Herói potencialmente criada por Homero (ou pelo conjunto de poetas gregos que assim se convencionou chamar) e trabalhando a partir da versão muito particular desse arquétipo literário criada modernamente por J.R.R. Tolkien em O Hobbit e O Senhor dos Aneis no gênero da alta fantasia, Jordan cria sua própria aventura infanto-juvenil com uma estrutura muito familiar à do autor britânico.
Vale dizer que afirmo o acima não só pelas declarações do próprio Jordan quando ainda vivo (ele faleceu em 2007 e sua obra foi encerrada por Brandon Sanderson, como também pelas óbvias e profundas similaridades entre sua obra e a de Tolkien. Mas é importante salientar, para fins de total transparência, que escrevo a presente crítica sem ter lido qualquer volume posterior, pelo que analiso somente O Olho do Mundo sem influências do que ainda está por vir.
Com isso, se é evidente que Jordan inspirou-se fortemente pelo trabalho de Tolkien tanto em estrutura, quanto em personagens, desafios e vilões, fica também muito claro que, aqui, no tomo sob discussão, ele nem de longe alcança a riqueza de detalhes dos épicos tolkenianos, faltando inclusive o cuidado e a sutileza do grande autor britânico para lidar com as mais diversas linhas narrativas sem perder o fio da meada. Se muito, O Olho do Mundo é uma mímica pálida de A Sociedade do Anel, mas com a leveza de O Hobbit que, porém, mesmo com seus problemas, consegue pelo menos armar convincentemente um tabuleiro para desenvolvimentos futuros, talvez sua maior qualidade.
Na história, depois que o vilarejo de Emond’s Field é atacado pelos monstruosos Trollocs, quatro jovens – Rand al’Thor, Matrim “Mat” Cauthon, Perrin Aybara e Egwene al’Vere -, o bardo Thom Merrilin (que estava de passagem) e a curadeira Nynaeve juntam-se a Moiraine Damodred, uma Aes Sedai (feiticeira) e seu fiel escudeiro, o guerreiro Al’Lan Mandragoran em uma fuga desesperada pelas terras de um lugar sem nome, com o objetivo de chegar até a cidade onde a feiticeira vive. Como de costume, diversos obstáculos vão sendo postos à frente dos personagens que precisam ultrapassá-los sejam juntos ou separados e, no processo, o leitor vai aprendendo mais sobre esse mundo expansivo que parece ser regido pela Roda do Tempo que, como o nome diz, gira e potencialmente traz recomeços, sendo cobiçada por um ser extremamente perigoso e poderoso que fica nas sombras. Qualquer semelhança, claro, não é coincidência alguma, muito ao contrário.
O ponto de vista inicial é o de Rand al’Thor, jovem que viveu a vida inteira em Emond’s Field, mas que lá não nasceu, já deixando entrever que ele é mais do que parece ser. Ele funciona como o leitor, curioso para entender exatamente o que está acontecendo, e deslumbrado pela magia da Aes Sedai e pela estratégia e experiência de Al’Lan Mandragoran. Quando o grupo se separa, lá pela metade da longa narrativa, Jordan introduz novos pontos de vista que amplificam e começam a explicar o que torna Mat, Perrin e Egwene especiais e igualmente cobiçados por Shai’tan (o nome não esconde a origem islâmica para espíritos malignos) que aparece nos sonhos dos jovens, atormentando-os e tentando-os. No entanto, apesar do tamanho avantajado do volume, há pouco desenvolvimento de personagens a ponto de ser até razoavelmente difícil criar empatia por eles para além do padrão de “jovens em apuros” e “adultos misteriosos”.
O que o autor entrega é, sem dúvida alguma, uma pequena (apesar das 800 páginas!) degustação do que está potencialmente por vir, fiando-se em clichês e arquétipos narrativos que confortam o leitor a cada capítulo, mantendo-se, portanto, em terreno firme e já testado, sem grandes arroubos criativos. É a fusão da Jornada do Herói com a Jornada de Amadurecimento em um mundo fantástico com magia, homens que se comunicam com animais, monstros, vampiros, portais místicos e toda a sorte de ameaça e também de criaturas benignas que populam a vastidão do terreno coberto pelo grupo que se reúne mais por desespero do que por realmente querer. É trilhando esse caminho mais viajado que Jordan entrega um livro inicial que não considero muito inspirado, mas que é fácil de ler justamente porque é familiar, mas que por ser familiar, não precisava do tamanho avantajado para contar uma história que é muito simples, mesmo considerando todos os detalhes que ele vai salpicando ao longo da narrativa.
Não tenho muitas dúvidas que Jordan, na progressão das aventuras de Rand al’Thor e companhia, encontrará sua própria voz, mas, aqui, em O Olho do Mundo, ele joga seguro demais, sem tentar nada realmente diferente, não justificando a interminável jornada de seu eclético grupo de personagens que pouco realmente se desenvolvem. Resumindo, o autor soube copiar e transformar, mas não conseguiu, nesse momento inicial, ver mais longe que os gigantes que vieram antes dele.
O Olho do Mundo – A Roda do Tempo: Livro 1) (The Eye of the World – The Wheel of Time: Book 1, EUA – 1990)
Autor: Robert Jordan
Editora original: Tor Books
Data original de publicação: 15 de janeiro de 1990
Editora no Brasil: Editora Intrínseca
Data de publicação no Brasil: 28 de agosto de 2013 (versão mais recente)
Tradução: Fábio Fernandes
Páginas: 800 (versão brasileira mais recente)