Home FilmesCríticas Crítica | O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes

Crítica | O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes

por Luiz Santiago
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Publicado em 1836, o conto satírico O Nariz, de Nikolai Gógol conta a história de um oficial de São Petersburgo cujo nariz abandona o rosto e decide ter uma vida independente. Trabalhando o absurdo na realidade das pessoas, o autor lança uma crítica cômica ao seu tempo, falando de aparências, identidade, percepção do olfato, relação com o sobrenatural e representação de papéis sociais, numa abordagem próxima ao complexo de castração. Em 18 de janeiro de 1930, estrava no Teatro Mikhailovsky a ópera O Nariz, de Shostakovitch, inspirada no conto de Gógol. E foi baseando-se nessas duas mídias que o diretor Andrey Khrzhanovskiy construiu o tema de sua animação O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes.

Na forma, a obra é incrível. O primeiro diálogo que ela estabelece com o público é o de mergulho metalinguístico, realizado a partir de uma variedade de telas com diferentes projeções. Nessa pequena bolha social (um avião, onde dezenas de estranhos irão conviver por um certo período), os gostos pessoais levam o público para momentos distintos da história da artística russa, com clássicos soviéticos de diferentes décadas, como O Encouraçado Potemkin (cuja cena da escadaria de Odessa aparece como referência em outros momentos da obra), Peça Inacabada Para Piano Mecânico e demais produções de diferentes gêneros, períodos e diretores. Khrzhanovskiy faz o presente descontruir-se através de uma variedade de imagens, depois captura temporariamente esse presente através de fotografias e alia essa profusão imagética e sua manipulação com o próprio exercício de realizar um filme, entrando aí na história de O Nariz.

A partir desse ponto, ainda nos primeiros minutos de projeção (o uso do tempo é de um cuidado ímpar, no início), temos a reprodução de trechos da ópera de Shostakovitch juntamente com a representação visual criada por Khrzhanovskiy, que faz questão de separar, aqui e ali, a exposição ficcional de seu processo de criação, exatamente como o nariz que se destaca do rosto do indivíduo e sai por aí fazendo outras coisas. A revelação dos bastidores brinca com a quebra provocada pelo texto de Gógol e pela música de seu compatriota, o que torna tudo uma interessantíssima brincadeira. Pontuando essa narrativa, vemos a presença de outras personalidades artísticas da Rússia e União Soviética, com destaque para Meyerhold, Mikhail Bulgákov (falando inclusive da criação de O Mestre e Margarida) e claro, do diretor Sergei Eisenstein.

A quebra de expectativas chega a um momento realmente interessante no miolo da obra, quando uma fala de Shostakovitch faz algo muito importante acontecer e, a partir desse ponto, a tônica de O Nariz muda, dando voz à segunda parte do título, que se revelaria irônica: a Conspiração dos Dissidentes. E é aí que reside o maior problema da obra. Mesmo que a separação entre os dois momentos seja narrativa e visualmente bem realizada, o diretor parece abandonar por completo o caminho inicial, mantendo apenas a criativa variação de técnicas (desenho em papel, aquarelas, recortes, stop-motion e computador 2D) mas com um tema crítico que, em si mesmo, é excelente — explorando a neurose de perseguição e extermínio no governo de Stálin — mas pouco contribui para a unidade do filme, algo ainda mais perigoso por se tratar da parte final da obra, onde as coisas deveriam caminhar para um fechamento ou, se fosse da vontade do diretor, para a construção de um final aberto.

O lado político distanciado do caos cômico de O Nariz nos dá a impressão de que mudamos de sessão, de que estamos vendo um outro filme. E por um lado, é verdade que estamos. Mas sob o mesmo guarda-chuva da obra de Gógol, fazia-se necessário a manutenção de uma linha que seguisse a costura, algo que o diretor simplesmente abandona, mostrando uma realidade política com grande impacto sobre a vida dos artistas na União Soviética, só conseguindo voltar à casa na reta final, reafirmando de modo meio trôpego aquilo que percebemos de maneira clara na excelente abertura. O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes é uma animação espirituosa, com excelente uso de técnicas e uma trilha sonora marcante. A quebra que ocorre no meio não derruba imensamente a qualidade geral da fita, mas adiciona-lhe a culpa de não manter o foco naquilo que construiu antes, mesmo que fosse para fazer uma crítica a um criticável regime.

O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes (Nos ili zagovor netakikh / The Nose or Conspiracy of Mavericks) — Rússia, 2020
Direção: Andrey Khrzhanovskiy
Roteiro: Andrey Khrzhanovskiy, Yuriy Arabov (baseado em história de Nikolai Gógol)
Elenco: Lyudmila Antonova, Naum Kleiman, Sergey Barkhin, Dmitrij Krymov, Anatoliy Vasiliev, Inna Krymova, Kama Ginkas, Yuri Rost, Anton Dolin, Katia Skanavi, Viktor Golyshev, Leonid Fedorov, Elena Golysheva, Lidiya Fedorova, Andrey Golyshev, Chulpan Khamatova, Mariya Zhavoronkova, Denis Shibanov, Elena Kasatkina, Andrey Khrzhanovsky.
Duração: 89 min.

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