O comissário, depois de muito pensar, já havia escolhido o título do livro: “A pacificação das tribos primitivas do Baixo Níger”.
Chinua Achebe tinha 28 anos quando publicou seu primeiro romance, O Mundo se Despedaça (1958), obra fundamental da literatura nigeriana e partida de um olhar “de dentro para fora” em relação à literatura africana como um todo. Antes de 1956, apenas cinco países (Libéria, África do Sul, Egito, Eritreia e Líbia) haviam iniciado o seu processo de independência frente aos dominadores europeus ou de fato conseguido essa independência. Foi com a libertação do Sudão Anglo-Egípcio (hoje Sudão e Sudão do Sul), no Ano-Novo de 1956, que uma onda gigantesca de revoltas, guerras, acordos e declarações vieram à tona, colocando diversos povos africanos na linha de frente pela defesa de seu território e o que restava de sua identidade cultural. Foi justamente no início dessa ebulição política no continente que Achebe concebeu Things Fall Apart, olhando para o momento presente e resolvendo remontar às suas raízes. Dois anos depois da publicação do livro, a Nigéria se tornou independente do Reino Unido.
Misturando a forma narrativa tradicional da língua inglesa com a dinâmica oral do Povo Igbo (Ibo, no romance), Achebe nos faz acompanhar a vida de Okonkwo, um bravo guerreiro de Umuófia que se tornou famoso após derrotar o Pantera Negra Gato, famoso e temido lutador daquele clã, que nunca havia caído de costas (daí o seu apelido). O estilo narrativo do autor, tal como nas narrativas orais, é marcado por diversas repetições — quase uma “história em círculos” –, utilizadas como ponto de partida para um novo bloco dramático, uma nova sequência de eventos. Eu gosto muito dessa forma de escrita, especialmente quando utilizada de maneira instigante como acontece aqui, nunca deixando de completar informações de uma situação específica, mas progressivamente cortando essa sequência de eventos com frases que anunciam um drama posterior. No decorrer do livro, o texto se torna mais fluído e esse círculo narrativo se abre, dando o peso maior da oralidade aos diálogos dos personagens, principalmente em contraste com os da nova geração ou com os do homem branco, no final da segunda parte e em toda a terceira parte do volume.
Achebe não tem pressa (à exceção de um único momento, na tragédia em uma festa que culmina no exílio de Okonkwo e cuja exposição destoa do livro) em construir os traços culturais, a organização social, os caminhos religiosos e o formato político do Povo Ibo, dando tempo para que o leitor entenda e reaja a todos, até mesmo às mulheres, que pela cultura local, são tratadas como propriedade dos maridos, vistas como fracas e indignas de grandeza, tendo aí uma repetida postura do protagonista em relação a tudo o que é feminino, tratado como algo negativo e ao qual um homem jamais deveria se entregar. Boa oratória e postura que não seja a do guerreiro e líder tribal são frequentemente expostas como uma vergonha para um homem. Desse modo, Achebe não cria um cenário Ibo perfeito, “uma Idade do Ouro onde a população vivia em paz e harmonia até que o homem branco chegou e despedaçou tudo“. A realidade no romance é tão complexa quanto a realidade histórica na Nigéria pré-colonial.
Como toda sociedade, a Umuófia retratada na obra tem os seus pontos de ruptura, seus desafetos, seus membros descontentes e costumes que muitos contestam para si mesmos, como o fato de abandonarem filhos gêmeos na floresta para morrerem (por serem considerados malignos), de matarem prisioneiros inocentes (como o jovem Ikemefuna), de terem uma casta marginalizada (os Osu), de abandonarem alguns doentes na floresta para morrerem (por terem doenças consideradas malditas), etc. O lado realista do livro pode ser visto tanto no recorte dos Ibos quanto no recorte dos britânicos. Dos dois lados podemos encontrar pessoas ponderadas, pessoas corajosas, pessoas infames, pessoas boas, más e de uma moral que passeia como um pêndulo pelos espectros, como no caso do protagonista, a quem amamos e odiamos, dependendo do momento.
Outro ponto importante aqui é a voz nativa narrando o seu modo de vida e não uma construção exterior fazendo esse trabalho, com um olhar embasbacado, paternalista, racista ou fantasioso, fator principal para a popularização do romance em seu país e, posteriormente, em seu continente de origem. Essa voz dos nativos é a que acompanhamos na maior parte do livro, em muitas vertentes, tendo apenas no final (já na década de 1890) a interferência europeia com sua nova religião, sua nova estrutura política e o rápido patamar de apagamento da cultura local, inicialmente por conversão dos que se encantaram com o Deus dos missionários, depois por clara imposição, como vemos nos terríveis e enraivecedores capítulos finais.
Da geografia à cultura, da sociedade à mitologia, das lendas dos antepassados, ditados populares e atividades econômicas ao embate com os colonizadores já nos primeiros anos de seu estabelecimento no local, O Mundo se Despedaça é capaz de nos fazer viajar no tempo e alinhar fatos históricos a esta ficção fascinante sobre um povo despedaçado pelo projeto de povo… de um outro povo.
O Mundo se Despedaça (Things Fall Apart) — Nigéria, Reino Unido, 1958
Autor: Chinua Achebe
Editora original: William Heinemann Ltd. (Reino Unido)
Edição lida para esta crítica: Companhia das Letras e *TAG, 2019 (Edição Especial)
Tradução: Vera Queiroz da Costa e Silva
Introdução e glossário: Alberto da Costa e Silva
240 páginas