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Crítica | O Mundo Depois de Nós

Um fim de mundo desfocado.

por Ritter Fan
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O Mundo Depois de Nós tinha tudo para dar muito certo, mas, por uma combinação de fatores especialmente relacionados com decisões equivocadas de roteiro e de direção, o filme acaba desperdiçando seu potencial e só não fica realmente abaixo da linha mediana em razão dos ótimos trabalhos dos três grandes nomes do elenco, Julia Roberts, Mahershala Ali e Ethan Hawke. Apesar de seu impecável comando de Mr. Robot, Sam Esmail, infelizmente, ainda não parece ter conseguido encontrar seu caminho e vem claudicantemente tentando firmar-se em sua vida pós-.Elliot Alderson.

O longa é mais um na categoria de “o fim do mundo está chegando”, só que abordando o macro a partir de um ponto de vista micro, com um elenco de qualidade, mas enxuto (são apenas seis personagens centrais e uma breve participação especial de Kevin Bacon) que fica quase que totalmente limitado a um grande cenário único, no caso uma mansão modernosa em alguma área exclusiva e remota de Long Island onde a família Sandford vai passar o fim de semana. Esmail escreveu um roteiro que tenta emular a atmosfera e o mistério das melhores obras de M. Night Shyamalan e decidiu filmá-lo evocando a estética inovadora e ousada de Alfred Hitchcock, sem, porém, realmente conseguir uma coisa ou outra e, pior, sem fazer dessa amálgama algo que resultasse em algo próprio, característico seu.

De Shyamalan, ele extrai a forma como a evolução da narrativa é construída a conta-gotas, com pequenas revelações aqui e ali que, aos poucos, oferecem um visão mais ampla – ainda que não totalmente coerente – do que está acontecendo. Mas, diferente de Shyamalan, que costuma seguir esse tipo de caminho sem desviar-se, Esmail parece querer abraçar o mundo ao abrir diversas frentes que acabam ganhando pouco ou nenhum desenvolvimento apesar da duração inchada do longa. De Hitchcock, o diretor e roteirista tentou capturar as cuidadosas movimentações de câmera e o uso quase científico da trilha sonora para criar um pequeno universo imagético ao mesmo tempo sofisticado e assustador, mas o que ele efetivamente acaba levando para a telinha são maneirismos espaciais que só fazem chamar atenção para o que ele está fazendo, seja ao insistir em fazer da câmera um carrinho de montanha-russa, seja ao usar a música como um indicador do que o espectador deve sentir, o que retira toda a naturalidade do conjunto. Em outras palavras, faltou foco e estilo próprio no trabalho de Esmail.

Fazendo uma sinopse mínima para não soltar spoilers, o filme lida com a família Sandford partindo para a tal mansão em Long Island que Amanda (Roberts) decide alugar sem avisar ao marido Clay (Hawke), arrastando-o e a seus filhos Archie (Charlie Evans), um adolescente com hormônios aflorando, e Rose (Farrah Mackenzie), uma menina viciada em Friends que está no último episódio da famosa série, para lá, de forma que ela possa fugir do contato humano. Na noite do primeiro dia, eis que eles recebem a inesperada visita de G.H. Scott (Ali) e sua filha Ruth (Myha’la) que trazem a notícia de um blecaute em Manhattan. Pode não parecer interessante o que escrevi, mas a verdade é que é uma excelente maneira de se começar o longa, ou seja, com o mínimo de informação possível sobre ele, algo que Esmail usa constantemente em favor da obra.

Na medida em que o interessante vai se metamorfoseando em bizarro, com um navio tanque encalhando na praia, uma invasão de veados no jardim da casa e uma mulher de origem mexicana falando desesperadamente em espanhol com Clay no meio de uma estrada deserta, dentre outras sequências assim, o filme até consegue ganhar pontos por prender a atenção do espectador, algo que fica ainda mais fácil com a ótima interpretação do trio veterano, especialmente Ali compondo um personagem misterioso, mas ao mesmo tempo muito humano, muito relacionável. No entanto, a progressão narrativa – ou a falta dela, dependendo de seu ponto de vista – nos faz indagar algo como “ok, e daí?”. E de forma alguma acho que a resposta a essa pergunta seja uma explicação detalhada do que está ocorrendo, pois, muito sinceramente, tudo o que o espectador precisa saber dos eventos macro está lá no filme, incluindo aí uma consideravelmente didático diálogo de G.H. com Clay no terço final e seu esperto – e, muito sinceramente, ótimo – final aberto. Ao contrário, a resposta que eu esperava era algo como a compreensão exata do foco do trabalho de Esmail, seu objetivo, por assim dizer.

Afinal, há diversos temas que são apresentados e, em seguida, são esquecidos ou resultam em um monólogo qualquer, sem profundidade. Vemos Amanda reclamar de sua incapacidade de se conectar com o mundo, algo que é refletido em sua filha acometida de ansiedade – quase desespero – para acabar com sua série, vemos um Clay confuso, perdido, mas que não resulta em absolutamente nada, uma aproximação de Amanda e G.H. que acaba ficando artificial e forçada e o inconformismo de Ruth com o racismo velado especialmente de Amanda. Como conversas de bar interrompidas por um gol na televisão do local ou diálogos travados entre personagens com déficit de atenção, Esmail escreve em espasmos e não termina o que começa. Quando ele avança em um assunto, e o único que ganha impulso maior é o tempero da crítica ao racismo, ele não consegue ir até o fim e prefere diálogos expositivos como o de Ruth com o seu pai que basicamente explica ao espectador o que está acontecendo a esse respeito e a finalizações desconcertantes e conveniente como são as aproximações de Amanda com G.H. e, mais para a frente, com Ruth.

Não sei o quanto o dinheiro da produção de O Mundo Depois de Nós veio com exigências restritivas ao que Esmail poderia fazer e o quanto do que vemos em tela é realmente parte de sua ideia original, mas fato é que o longa, por mais esteticamente sofisticado que possa ser e por mais que apresente uma história que prenda o espectador, falha quando usa movimentos de câmera e trilha sonora artificiais e, principalmente, quando conduz sua narrativa sem um norte claro e sem se perder em tergiversações que não levam a lugar algum. Pelo menos o cineasta consegue, em linhas gerais, criar um mistério interessante e extrair boas performances de seus elenco central, algo que “aquele outro filme de final de ano sobre fim do mundo que o Netflix produziu” não conseguiu chegar nem perto..

O Mundo Depois de Nós (Leave the World Behind – EUA, 08 de dezembro de 2023)
Direção: Sam Esmail
Roteiro: Sam Esmail (baseado em romance de Rumaan Alam)
Elenco: Julia Roberts, Mahershala Ali, Ethan Hawke, Myha’la, Farrah Mackenzie, Charlie Evans, Kevin Bacon
Duração: 141 min.

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