A sensacional escritora americana de ficção científica Ursula K. Le Guin começou sua carreira com poemas e contos publicados a partir de 1959. Foi somente em 1966 que ela conseguiu publicar seu primeiro romance, O Mundo de Rocannon, que conta com um prelúdio – O Dote de Angyar, mais tarde renomeado para O Colar de Semley – publicado separadamente primeiro, em 1964, que abre caminho para uma história que não exatamente decorre diretamente dele, mas que usa todos os elementos e personagens lá apresentados para construir um fascinante universo que seria conhecido como Ciclo Hainish, composto por diversos livros que compartilham do mesmo universo, mas que são, essencialmente, histórias independentes e que podem ser lidas fora da ordem de lançamento como a própria autora por diversas vezes reiterou ao longo de sua carreira.
O Mundo de Rocannon ainda é, visivelmente, o trabalho de uma escritora tentando encontrar seu estilo e voz próprios, mas ela faz, já aqui, algo raro em obras de ficção científica, que é criar uma narrativa que pode ser vista tanto quanto sci-fi como quanto alta fantasia. Na verdade, diria que o curto romance é, em sua essência, uma obra de alta fantasia na linha de O Senhor dos Anéis – de onde ela muito claramente tirou parte da inspiração para escrevê-lo – com uma inteligente camada de ficção científica, como se a fantasia estivesse dentro de uma “redoma sci-fi“, por assim dizer. É que as espécies humanoides nativas do planeta onde a ação se passa, Fomalhaut II, estão em diferentes estágios de evolução, mas que, no geral, as colocam como equivalentes da Idade Média na Terra, e ele faz parte de uma rede de planetas de interesse da Liga Interplanetária que “semeia” conhecimento ou domina planetas quando eles chegam a determinado ponto evolutivo, premissa que também lembra a base de 2001 – Uma Odisseia no Espaço e, claro, os contos de Arthur C. Clarke que inspiraram o filme e que são anteriores à obra de Le Guin, além da franquia Star Trek.
Nesse contexto, Gaverel Rocannon é um antropólogo que, depois de brevemente aparecer no prólogo, se torna o protagonista da história ao acabar preso em Fomalhaut II depois que misteriosos inimigos sem rosto, sem nome e sem sequer alguma forma física descrita no romance (novamente, ecos de O Senhor dos Aneis) abatem sua nave científica, matando todos os seus colegas. Sozinho e sem possibilidade de voltar para casa pelos princípios da dilação temporal, ele alia-se aos nativos do planeta, especialmente aos Angyar e, por meio de felinos alados, barcos e longas caminhadas, embarca em uma jornada épica para conseguir acesso a um ansible – um “rádio” mais rápido que a luz cujo nome foi criado por Le Guin e que se tornou padrão na literatura de ficção científica americana por ela e também por outros autores ao longo das décadas – para poder avisar a Liga da invasão no planeta. Ao longo do caminho, então, aprendemos mais sobre Rocannon e seu espírito científico que impediu que Fomalhaut II e seus povos fossem explorados pela Liga, sobre os Angyar, basicamente humanos de pele negra e cabelos loiros, os Olgyior, humanos menos desenvolvidos de pele clara e cabelos negros e historicamente subordinados aos Angyar e, também, sobre os Fiia, equivalentes a elfos e os Gdemiar, equivalentes a anões, o que, claro, aproxima sobremaneira a narrativa a universos tolkenianos, acrescidos de elementos importantes relacionados à telepatia e poderes mentais semelhantes que pontilham a história.
Talvez o principal comentário que Le Guin faz ao longo de sua obra é a crítica à colonização, à exploração de raças vistas como “inferiores” tecnologicamente, algo que Rocannon entende logo de início, mas passa a compreender com mais detalhes na medida em que ele avança pela geografia do planeta em direção ao quartel-general dos invasores. E é claro que essa exploração não se dá somente pela Liga em relação aos planetas que assimila, mas também endemicamente em Fomalhaut II, com a criação de uma estrutura de subordinação e, em última análise, preconceito. Rocannon, visto como um “senhor das estrelas” por todos ali, tem um status diferenciado de deus e também de observador, mas, interessantemente, precisa “involuir” e adaptar-se às condições sem tecnologia em que ele inevitavelmente se encontra, mas ao mesmo tempo percebendo o quanto sua visão de evolução e de tecnologia é relativa.
Le Guin consegue, com bastante facilidade, o que não deve ser confundido com simplicidade, criar uma mecânica complexa de raças e de fantasia versus ficção científica, algo que ela triunfa ao beber de fontes conhecidas e usar seu estilo direto e sem firulas de escrever para fazer a roda narrativa girar com eficiência e em ritmo constante. No entanto, ela não sustenta a cadência até o final e, na medida em que a história caminha para seu clímax, a escritora toma atalhos cada vez mais convenientes para acelerar os acontecimentos, o que acaba levando a um encerramento corrido, com pelo menos um deus ex machina um pouco frustrante e um epílogo talvez feliz demais, destoando levemente do que ela vinha eficientemente construindo. Não são problemas intransponíveis para a apreciação da obra, especialmente se lembrarmos que este é seu primeiro romance e o primeiro – bem, tecnicamente o segundo, se considerarmos separadamente o preâmbulo – mergulho no vasto Ciclo Hainish. Eles estão mais para, diria, algo semelhante às dores do crescimento, processo importante para todos nós e para uma escritora que, não demoraria muito, nos entregaria obras como A Mão Esquerda da Escuridão e os volumes do Ciclo Terramar.
O Mundo de Rocannon é, portanto, uma potente, ainda que imperfeita estreia de uma autora no mundo dos romances de ficção científica/fantasia, uma obra que deixa muito claramente entrever seu potencial inato de construção de universos e de criação de personagens fascinantes em um amplo contexto de crítica socioeconômica. Sem dúvida um firme primeiro passo para a prolífica carreira desta rara desbravadora de um gênero normalmente “reservado” para homens.
O Mundo de Rocannon (Rocannon’s World – EUA, 1966)
Ciclo Hainish: Livro Um
Autora: Ursula K. Le Guin
Editora original: Ace Books
Data original de publicação: 1966
Editora no Brasil: Editora Ediouro
Data de publicação no Brasil: 1977
Páginas: 218