Dentre as tantas qualidades do livro de Ana Claudia Giassone, uma delas é preciso destacar com veemência logo nas primeiras linhas dessa crítica: a capacidade da autora transformar as complexidades em torno não exatamente do romance Frankenstein, de Mary Shelley, mas de seus desdobramentos em outras áreas do conhecimento. Ao longo das 108 páginas elucidativas de O Mosaico de Frankenstein: O Medo na Obra de Mary Shelley, veiculado em 1998 pela editora UNB, a autora traz em sua publicação, sob o invólucro da capa simples de Maurício Borges, um panorâmico olhar para a narrativa que ainda em 2024, possui conexões com a nossa realidade social, política e científica, fator que justifica a posição da narrativa gótica no panteão dos clássicos, tal como delineado por Ítalo Calvino em seu famoso ensaio. Além das fichas técnicas, referências devidamente organizadas para quem deseja ampliar os conhecimentos sobre o universo retratado em sua pesquisa, Giassone traduz as interpretações em torno de Frankenstein para uma linguagem acessível, atravessando com garra os muros acadêmicos que em muitas ocasiões, tece textos que dialogam apenas entre os seus pares.
Com uma introdução objetiva, O Mosaico de Frankenstein: O Medo na Obra de Mary Shelley abre espaço para três capítulos: Olhando para Adiante (primeiro), Construindo o Mosaico (segundo) e Despertando a Criatura (terceiro), para mais adiante, fechar as suas ideias numa assertiva conclusão. A autora nos explica a concepção do livro, perpassa a trajetória de Mary Shelley, comenta a famosa noite do concurso literário na residência de Byron, elementos que estão presentes em praticamente todos os estudos voltados ao universo de Frankenstein. Dentre as passagens mais interessantes, temos a contextualização da busca pelo gótico na época em que Mary Shelley viveu a sua juventude, numa abordagem interessante sobre a morte nas composições literárias de Edgar Allan Poe, num destaque que apresenta uma perspectiva interessante: enquanto muitos escritores situavam as suas tramas em cenários exóticos e longínquos, com apego aos fantasmas do passado, Shelley era uma escritora que trafegava na contramão, com um enredo que se fincava no presente e ofertava um olhar para o futuro.
Ademais, ao longo das breves, mas assertivas páginas do livro, a pesquisa de Ana Claudia Giassone delineia quatro conexões literárias do repertório cultural de Mary Shelley, presentes de alguma maneira, na concepção de Frankenstein. E, será sobre essas associações que essa crítica vai se debruçar até o seu desfecho. Ao observarmos o texto do romance, repleto de irregularidades, por sinal, podemos perceber que a jovem escritora nos apresenta uma base narrativa que se interliga com Fausto, de Goethe, com a abordagem mítica da criação do Gênesis, o preâmbulo da Bíblia, além de Paraíso Perdido, de John Milton, e a mitologia judaica, com o processo de criação não divina de um ser, presente no Golem. Ao observar as referências traçadas pela pesquisadora, essas associações não se tratam de novidades. E nem é isso que interessa por aqui. O importante é como ela resgata tais informações de autores predecessores e estabelece tudo isso de maneira muito orgânica na base de sua análise. E, nesse processo, nos aguça o senso crítico e também o desejo de ir além, de se aprofundar no panorama para compreender melhor a teia de intertextualidade e ilações na obra-prima de Mary Shelley.
Começo, então, com as relações entre o livro bíblico Gênesis e o romance Frankenstein: ambas as narrativas exploram a questão da criação e seus consequentes dilemas éticos, oferecendo uma crítica profunda às ambições humanas frente ao poder de criar vida. No relato bíblico, a narrativa da criação apresenta Deus como o criador supremo, que molda o homem à sua imagem e semelhança, dando-lhe vida através de seu sopro divino. Esta criação, no entanto, não se limita apenas ao homem. Gênesis também aborda a criação de Eva como uma companheira para Adão, destacando a importância da união e da interdependência. O relacionamento entre o Criador e suas criaturas é estabelecido em um contexto que enfatiza a responsabilidade, a liberdade e as consequências das escolhas. Em contrapartida, Frankenstein, de Mary Shelley nos apresenta Victor Frankenstein, um cientista ambicioso que, em sua busca pelo conhecimento, decide desafiar os limites naturais ao criar vida a partir de partes de corpos mortos. Essa transgressão em relação às leis naturais invoca diretamente o conceito de criação divina encontrado em Gênesis e, ao mesmo tempo, questiona a ética e a moralidade dessas ações humanas. Enquanto as criaturas de Deus em Gênesis são consideradas “boas” e possuem um propósito definido, a criação de Frankenstein, o Monstro, se torna uma reflexão sombria sobre a condição humana e a responsabilidade do criador.
Sobre Fausto, de Goethe, temos ao estabelecimento de um debate profícuo, pois ambas tratam um tema tido como “universal”: a ambição humana, algo que leva os seus personagens para uma caminhada em busca pelo conhecimento desmedido, sem reflexão prévia sobre as consequências de transgredir os limites da natureza. Embora separados por décadas, ambos os textos exploram a condição humana em um mundo em transformação, oferecendo uma visão crítica sobre as consequências da busca desenfreada pelo poder e pela verdade. Fausto, insatisfeito com os limites do conhecimento humano, faz um pacto com Mefistófeles, vendendo sua alma em troca de sabedoria e prazeres terrenais. Através dessa narrativa, Goethe investiga a dualidade entre o bem e o mal, a busca pelo sentido da vida e as implicações da escolha de transgredir as leis naturais. Fausto, com sua incessante ambição e desejo de desvendar os mistérios do cosmos, representa o arquetípico homem moderno que, mesmo ciente dos riscos, se lança em uma jornada em busca de um entendimento mais profundo da existência. Por outro lado, Frankenstein nos apresenta a história de um jovem cientista que, motivado pelo desejo de compreender os segredos da vida e da morte, acaba criando um ser a partir de partes de cadáveres. A criação de Frankenstein, muitas vezes chamada de “monstro”, é uma representação da irresponsabilidade e das consequências devastadoras que podem advir do desejo de dominar a vida sem considerar suas implicações éticas e morais. Assim como Fausto, Victor ultrapassa os limites do que é considerado aceitável e, ao fazê-lo, provoca uma série de eventos trágicos.
Paraíso Perdido, publicado em 1667, é um poema que narra a história da Criação, a queda do homem e a expulsão do Éden. O foco principal está na rebelião de Lúcifer e no subsequente impacto de sua desobediência, não apenas sobre ele mesmo, mas, crucialmente, sobre Adão e Eva. A obra explora conceitos de livre-arbítrio, pecado e redenção, questionando a responsabilidade dos seres criados em relação ao seu Criador. Em Frankenstein, publicado em 1818, temos a saga do cientista que, em sua busca por conhecimento, concebe uma criatura a partir de partes de corpos humanos. A conexão mais evidente entre as duas obras reside na figura do criador e na relação com sua criação. Victor Frankenstein, assim como Deus em Paraíso Perdido, assume o papel do criador. Entretanto, enquanto Deus é descrito como um ser perfeito que cria o homem à sua imagem, Frankenstein falha em proporcionar à sua criação o acolhimento e a educação necessária, resultando em tragédias. Essa falha moral reflete uma crítica à arrogância do homem que, ao tentar sobrepujar os limites da natureza, enfrenta consequências devastadoras. A catástrofe provocada por essa transgressão lembra a rebelião de Lúcifer, que também se levantou contra as ordens divinas e desafiou as consequências de suas ações. Além disso, a criatura de Frankenstein e Lúcifer, em Paraíso Perdido, se apresentam como figuras simpáticas, ambas em busca compreensão e aceitação.
Por fim, outra figura curiosa é o Golem, emblemático na mitologia judaica. Em linhas gerais, o conceito de criar um golem é geralmente associado à ideia de que um rabino, através de fórmulas místicas e do uso do Santo Nome de Deus, dar vida a um humanoide feito de barro ou terra. Um dos relatos mais famosos é o do rabino Judah Loew de Praga, que, no século XVI, teria criado um golem para proteger a comunidade judaica da perseguição. Este golem, segundo a lenda, era capaz de realizar tarefas e defender os judeus, mas também carecia de compreensão moral e social, levando a consequências imprevistas. As narrativas sobre o golem variam amplamente, mas em muitas versões, a criatura é dotada de força extraordinária. No entanto, seu comportamento muitas vezes reflete a falta de sabedoria de seu criador. O golem não possui livre-arbítrio e, portanto, sua natureza pode ser brutal e instintiva, refletindo a natureza primitiva da humanidade. A incapacidade do rabino de controlar a criação, que eventualmente se torna uma ameaça, serve como uma metáfora poderosa sobre a arrogância humana e a responsabilidade que vem com o poder da criação. As associações com Frankenstein, salvaguardas das devidas proporções, são evidentes. Ademais, numa conexão com o nosso vertiginoso contemporâneo, o golem se tornou uma figura importante em discussões em torno da inteligência artificial e da ética em tecnologia. Com o avanço das capacidades das máquinas e o surgimento de IA que imita a cognição humana, a história do golem se torna cada vez mais relevante. Assim como o rabino que cria o golem, os humanos modernos enfrentam desafios em relação à sua própria responsabilidade na criação de inteligências artificiais. O golem, neste contexto, serve como um alerta para os riscos da criação sem consideração moral e ética.
Todas as colocações, por aqui, não estão exatamente no livro de Ana Claudia Giassone, mas foram despertadas e reconectadas com os insights estabelecidos pela pesquisadora.
O Mosaico de Frankenstein: O Medo na Obra de Mary Shelley (Brasil, 1998)
Autoria: Ana Claudia Giassone
Editora: UNB
Páginas: 108