O romance Frankenstein, escrito por Mary Shelley e publicado inicialmente em 1818, por meio de um pseudônimo, transcendeu seu status de obra literária para se tornar um mito cultural duradouro. A história de Victor Frankenstein e a criatura que ele cria é mais do que uma simples narrativa de horror constantemente traduzida para outros suportes na era da reprodutibilidade técnica que dominou o século XX e continua em seus desdobramentos no contemporâneo. A publicação é uma reflexão sobre as complexidades da condição humana, o conhecimento, a responsabilidade e a natureza do que é considerado ser humano. Em suas curiosas páginas, Frankenstein aborda a busca humana por conhecimento e poder. Victor Frankenstein simboliza o cientista ambicioso que ultrapassa os limites do que é moralmente aceitável em sua busca por criar vida. Ele utiliza o conhecimento científico para desafiar as fronteiras da natureza, em algo que resulta em consequências desastrosas que ressoam nos dias de hoje, quando debates sobre biotecnologia, inteligência artificial e ética científica se tornaram cada vez mais relevantes. A criatura, por sua vez, torna-se um reflexo dos excessos da humanidade. Sua existência nos questiona: até onde devemos ir em nome do progresso? Essa dúvida secular inquietante coloca a narrativa de Mary Shelley diante do status de mito, pois suas lições permanecem eternas. Em linhas gerais é o que contemplaremos na perspectiva crítica do livro aqui analisado.
Dividido em oito capítulos, O Mito de Frankenstein: Imaginário e Educação é uma publicação da mesma coleção que integra os estudos antes aqui apresentados sobre Moby Dick e Drácula. Organizada por Alberto Filipe Araújo, Rogério de Almeida e Marcos Beccari, o material integra o primeiro volume da Coleção Mitos da Pós-Modernidade, um projeto da USP. Entre poucos altos e baixos, os estudos apresentados conseguem manter um determinado nível de qualidade acadêmica, evitando assim que haja textos muito proeminentes e outros eclipsados. Como prefácio, temos o elucidativo Um Pesadelo Maravilhoso e Fecundo: Nos 200 Anos de Frankenstein, texto assinado pelos editores para abrir os caminhos da nossa leitura, dando destaque ao aniversário da narrativa gótica de Mary Shelley, numa passagem rápida pelo galvanismo e pelas teorias de Erasmo Darwin, basilares para a concepção do romance em questão. Outrora intitulado Olhares Sobre Frankenstein, o livro incorpora novos capítulos para delinear o legado e o impacto cultural do personagem em consonância com a educação. Para professores, eis uma elucidativa leitura para criação de planejamentos em torno de aulas sobre uma história constantemente presente no ensino de literatura na sala de aula. Como observaremos ao longo do livro, o título do prefácio é bastante apropriado: “fecundo”, como uma assertiva palavra-chave, define as possibilidades pedagógicas de Frankenstein para debatermos temas dos mais diversos, da literatura ao âmbito dos conhecimentos gerais.
Ao longo da introdução, intitulada Retorno do Mito ou Hermenêutica do Mito, de Jean-Pierre Sironneau, nós somos brindados com um questionamento logo na abertura: o que é um mito? Nessa abordagem questionadora, o autor expõe que o mito nos narra uma história de cunho sagrado, onde são apresentados relatos sobre eventos que tiveram lugar em um tempo primordial, fabuloso, etc. Em geral, é sempre o relato de uma criação. Para embasar as suas reflexões sobre os aspectos mitológicos em Frankenstein, o autor expõe mais conceitos sobre mito, trazendo como referencial Gilbert Durand, para apontar que o mito é um sistema de simbologias arquetípicas que tendem a compor narrativas. Há menções ao mito em perspectivas múltiplas, indo dos gregos ao cristianismo, trafegando pelo medieval até os românticos, num caminho que se estabelece no contemporâneo. No primeiro capítulo, Mary Shelley: Vida e Obra, de Armando Rui Guimarães, bastante extenso e farto de notas de rodapé, nos aprofundamos na biografia da escritora. Logo na abertura, o questionamento: quem escreveu Frankenstein? É uma pergunta provocativa, focada na habitual confusão que se faz entre o monstro da narrativa e seu criador, Victor, o “verdadeiro” Frankenstein, o personagem, mas que muitos confundem com a criatura, haja vista sua popularização na era da reprodutibilidade técnica. Interessante observar, ao longo do texto, a presença de Shelly no terreno da literatura, uma mulher que em vida ficou completamente eclipsada pelo marido e deixou o romance em questão, analisado por aqui, como a sua obra máxima. Pouco se fala de Mary Shelly vinculada ao que vai além de Frankenstein.
Em Como Criar Um Monstro: O Manual de Instruções do Dr. Victor Frankenstein, de Armando Rui Guimarães e Alberto Filipe Araújo, segundo capítulo do livro, mais curtinho que o antecessor, nós acompanhamos uma análise que se inicia projetando o cenário de composição do romance. Mary, o marido, Polidori, Byron e um lugar ermo, distante de tudo. É assim que nasce uma das figuras ficcionais góticas mais famosas da história da literatura. No jogo proposto pelo poeta mais cotado da época, todos são colocados em teste. A ideia é que uma história de horror seja desenvolvida. O ânimo do preâmbulo logo é deixado de lado pela maioria e apenas a escritora consegue fechar a narrativa combinada. É como surge Frankenstein. Os autores do artigo radiografam a recepção da primeira edição, alvejada por críticas mistas, depois explicam alguns pormenores das edições seguintes, acompanhadas de textos introdutórios que estabelecem uma perspectiva genética para o romance. No terceiro capítulo, Victor Frankenstein: Um Prometeu Moderno, dos mesmos autores, temos uma interessante abordagem sobre o personagem, um pai de postura irregular que se tornou uma figura em segundo plano durante o trajeto de calcificação do livro no imaginário popular. Há, no entanto, um direcionamento educacional na análise, talvez o mais profícuo desse livro, nos ofertando uma observação delineada do quanto o cientista é um personagem revelador para compreendermos o olhar de Mary Shelley para o tópico “compreensão da natureza humana”. Didaticamente, os capítulos do livro são explicados, numa conclusão que caminha para a afirmação de Victor como uma figura obcecada por domínio diante do outro, incapaz de refletir sobre a necessidade alheia, absorto apenas naquilo que é do seu interesse, em linhas gerais, um egoísta e manipulador. Tóxico na linguagem atual? Para pensar.
Os autores, ainda com fôlego, retornam para o quarto capítulo, intitulado O Monstro Frankenstein: Uma Leitura Educacional, texto que explora a história do livro como uma narrativa tão famosa quanto o enredo em si. Eles retomam o contexto da noite de criação proposta por Byron, passeiam pelas questões debatidas na época, dentre elas, o galvanismo, a atmosfera literária gótica em ascensão, bem como as teorias acerca das origens da vida, fincando a observação no mito de Prometeu. Didáticos e cuidadosos com os leitores, a dupla trata das temáticas em Frankenstein, elucidativas para os interessados em traçar planos de debate para o romance em sala de aula. Assim, do ponto de vista pedagógico, apontam a temática do abandono, da solidão, da morte, da sociedade de aparências, da busca por um nome e, consequentemente, de uma identidade na angústia do “monstro”, além da responsabilidade, uma palavra-chave que nos permite discutir o livro numa perspectiva ética. Mais adiante, José Augusto Ribeiro assume o quinto capítulo, A Utopia da Fabricação do Homem, passagem do livro que flerta com os pensamentos que permeavam a época de Mary Shelley, uma fase conhecida pela intensidade filosófica daqueles que vivenciavam o advento da modernidade, guiada pelo desenvolvimento tecnológico, a busca da sociedade pelo “homem novo”, interessado no progresso. É um texto um pouco mais complexo que seus antecessores, que analisa o mito de Prometeu, versa sobre Ésquilo, trata do “homem como aprendiz de feiticeiro” e reflete o caos cósmico estabelecido por Victor Frankenstein ao ir além dos seus limites e criar vida quando o seu emocional sequer tinha condições de assumir os desdobramentos daquilo que ele mesmo concebeu artificialmente.
Na tessitura de O Mito de Frankenstein no Cinema, capítulo assinado por Rogério de Almeida, nós contemplamos uma análise que contextualiza o horror no cinema. É interessante e possui uma escrita fluente. O autor explica as ressonâncias de O Gabinete do Dr. Caligari e de Nosferatu, clássicos expressionista de Robert Wiene e F. W. Murnau, respectivamente, na trajetória de James Whale e sua versão de Frankenstein com Boris Karloff, ainda hoje a mais remissiva quando pensamos no monstro. É a que estampa capa de livros, embasa histórias em quadrinhos e nos faz perceber o personagem quando mencionado em alguma roda de conversa. É o poder da imagem na era da reprodutibilidade técnica. Mas o autor, panorâmico, não fica apenas no clássico da Universal. Ele nos oferta pistas para melhor compreender a presença do personagem no audiovisual ao passear pelas continuações da narrativa da década de 1930, bem como o ousado projeto de Kenneth Branagh, da década de 1994, um trunfo estético e dramático que se aproxima bastante do texto de Mary Shelley ao traduzir o romance para outro suporte semiótico. No sétimo capítulo, Ser Frankenstein no Cruzamento das Ciências e das Humanidades, a autora Paula Alexandra Guimarães expõe que Mary Shelly trouxe uma abordagem inovadora ao sair da atmosfera exclusivamente gótica da época ao imprimir elementos modernos nas páginas de sua narrativa “monstruosa”. No artigo, somos informados que o galvanismo é, de fato, uma corrente que estrutura a história de Frankenstein, mas mesmo sem provas, as teorias do teólogo e alquimista Johann Konrad Dippel são especuladas nas discussões sobre tudo que teria inspirado a escritora na composição de seu enredo. Num elucidativo processo de reflexões, há debates sobre os embates entre pensamento científico versus mitológico, numa jornada que preza pela linguagem acadêmica, mas que não deixa de lado muitos elementos que formam a história por detrás da tessitura de Shelley como autora de um dos enredos de horror mais conhecidos da história literária.
Em seu desfecho, O Corpo e a Tessitura Textual: Uma (Outra) Anatomia de Frankenstein, de Marcos Beccari, um dos editores da publicação, os leitores podem trafegar pela Arqueologia do Saber, de Foucault, para versar sobre o fato de todo livro ser, de alguma maneira, um “Frankenstein”, isto é, mosaico de conteúdos que integram uma publicação: cabeça, capa, espinha, orelhas, apêndices, etc. É uma virtuosa caminhada filosófica de leitura. Nas aulas de quem vos escreve, por ilustração, todos os aspectos de um livro são contemplados em análise, algo pouco comum, haja vista atividades que preconizam mais o conteúdo narrativo em si, de fato protagonista dos processos pedagógicos, no entanto, ao analisar capa, diagramação, dentre outros, lidamos com reflexões sobre processos criativos, algo que amplia as dimensões interpretativas da literatura em sala de aula. Para o autor, o livro é um organismo em condições de vida e de morte, e nessa pavimentação de reflexões, destaca como o personagem monstruoso da escritora Mary Shelley se tornou um mito cristalizado em nosso imaginário. Nessa viagem, flerta com o imaginário dos anos 1800 em relação ao corpo humano, para que assim nós possamos compreender a base estrutural de composição do romance. Um dos pontos mais interessantes é quando destaca que nessa época, o estudo acerca da fisiologia humana deixou de ser uma tarefa descritiva para se tornar uma análise comparativa e sistemática.
Acadêmico, mas sem a escrita cifrada de muitos integrantes do meio, O Mito de Frankenstein: Imaginário e Educação é uma elucidativa e pormenorizada leitura panorâmica pelo clássico.
O Mito de Frankenstein: Imaginário e Educação (Brasil/Portugal, 2018)
Autoria: Alberto Filipe Araújo, Rogério de Almeida e Marcos Beccari (orgs.)
Editora: FEUSP
Páginas: 229