Personagem definidor da mitologia vampírica, algo já mencionado em diversos textos sobre a obra-prima de Bram Stoker publicados por aqui, Drácula já promoveu um manancial de artigos, ensaios, dissertações, teses, documentários e outros conteúdos interessados em interpretar o seu desenvolvimento enquanto material literário, em análises que vão desde as peculiaridades estruturais do livro ao contexto histórico, processos de tradução para outras linguagens, dentre tantas outras possibilidades de reflexão em torno de uma composição literária de 1897, ainda muito relevante na atualidade no quesito mito. Sim, o conde vampiro tecido com base em muita pesquisa pelo escritor irlandês é um dos ícones mitológicos literários mais fortes, recorrente no contemporâneo, haja vista o seu potencial para o cinema, a televisão, as histórias em quadrinhos, o turismo, etc. O sangue é vida, segundo um dos personagens do livro. E, se o vampiro é uma figura sobrenatural desprovida desta substância, aparentemente se alimenta constantemente dela para conseguir se posicionar tão bem na atualidade. Segundo esta publicação, Drácula vive.
A leitura dos mitos que circundam por uma sociedade é uma maneira dos indivíduos que a habitam compreendê-la. Esta afirmação da introdução revela a tônica de O Mito de Drácula: Imaginário e Educação, publicado em 2019 pela FEUSP, uma parceria entre universidades do Brasil e de Portugal. Mesmo diante da racionalidade que estrutura a nossa era de intensos avanços tecnológicos, de lentes aumentadas para a realidade, o fascínio dos mitos se reforça cotidianamente. O humano, assim, continua diante da necessidade de narrativas, imagens e histórias que o ajude a se situar no mundo, a dar sentido para as coisas ou preencher lacunas. A escolha de Um Vampiro Renasce das Suas Cinzas, de Jean Marigny, como primeiro capítulo do livro, é uma ótima opção, haja vista a tradução assertiva de Fernando Antunes para o artigo panorâmico sobre o personagem foco da publicação. As principais figuras ficcionais são analisadas, a estrutura epistolar do romance, seu legado e impacto cultural, num texto que dialoga com a biografia de Bram Stoker, delineando a sua pesquisa para composição do conde vampiro. O autor atravessa o século XX em seu mapeamento, pontuando as adaptações para teatro, cinema, releituras literárias, dentre outros, estabelecendo um bom começo para a volumosa publicação voltada ao extenso mito de Drácula.
No capítulo II, intitulado Da Transilvânia a Londres: Uma Viagem de Estudo pelo Drácula de Bram Stoker, nós leitores temos uma interessante descrição de pesquisa assinada por Armando Rui Castro de Mesquita Guimarães. Curiosa a análise da palavra vampiro como tendo a possibilidade de origem na cultura eslava, “vampir”, bem como da russa “upyr”. O texto destaca o pesadelo que Bram Stoker teve com um morto-vivo numa certa noite de sono inquieta, algo que provavelmente o inspirou na tessitura de sua obra-prima. Algo semelhante, segundo relatos, aconteceu com Frankenstein, de Mary Shelley, narrativa de horror do século XIX que também pode ter se originado de um terrível pesadelo. É um artigo de menor impacto que o material de abertura, mas ainda assim muito cuidadoso em suas pontuações. Seguido por Drácula Face à Imortalidade: Sob o Signo da Remitologização, de Alberto Filipe Araújo e José Augusto Ribeiro, dupla de autores que desenvolve uma reflexão com muitos trechos extraídos do livro, um excesso de citações do romance que cansa a perspectiva leitora. É um trabalho que merece todo o nosso respeito em termos acadêmicos, mas quebra a fluência do que a publicação traz até então.
O tom fluente retorna no capítulo IV, intitulado Drácula no Cinema: Cenas de Uma Erótica Prometeica, artigo assinado por Rogério de Almeida e Marcos N. Becarri. Na análise, os autores destacam o potencial cinematográfico de Drácula, um personagem desgastado pelo excesso de traduções para o suporte audiovisual. Delineiam Nosferatu, de 1922, como obra-prima, deixando logo claro o tom de apego ao que é clássico e aurático para os leitores, mas sem mapear os outros filmes com desrespeito. Didático e dinâmico, aqui temos uma reflexão panorâmica que não deixa de se aprofundar no que tem como proposta, indo na contramão da superficialidade e destacando o terreno do conde vampiro ao longo de sua trajetória extensa no século XX. Interessante a abordagem comparativa de Drácula com outros dois mitos: Don Juan e Fausto, tendo como perspectiva o lado erótico e sensual do monstro na versão do cinema de 1992. Traz contribuições sobre monstruosidade presentes em A Filosofia do Horror e os Paradoxos do Coração, de Noel Carroll, complementando ainda com as simbologias do mundo fechado presentes no livro: a noite, o túmulo, a caverna, o ventre, dentre outros. Presente na publicação como um dos melhores artigos, o texto ainda traz o diálogo entre Drácula e Lúcifer, ambos com seus respectivos desejos expressos de transgressão da ordem estabelecida.
No capítulo V, A Morte Infinita: Uma Breve Genealogia de Drácula, os autores Rogério de Almeida e Marcos N. Beccari fazem uma profunda análise sobre a imortalidade no imaginário, demonstrando os paradoxos que envolvem a existência de Drácula como um morto-vivo. O filme de Francis Ford Coppola também ganha destaque, em especial, no tópico de reflexão sobre as questões eróticas envolvendo o sangue no universo deste personagem. História da Sexualidade, do filósofo Michel Foucault, é uma das bases que estruturam o artigo, destacando questões pontuais teóricas presentes no livro, no filme e no imaginário em torno do personagem. Embasa também a jornada com tópicos de Os Anormais, A Verdade e as Formas Jurídicas, O Nascimento da Clínica, História da Clínica, além de pavimentar a análise com Dança Macabra, de Stephen King e Genealogia da Moral, de Nietzsche. Em Drácula Para Crianças no Século XXI: Estratégias de Aproximação ao Leitor, Fernando Azevedo, Ângela Balça e Moisés Selfa Sastre abordam as aplicações lúdicas do vampiro para públicos mais jovens, por meio de uma série de aplicativos mapeados numa pesquisa interessante, mas que merecia um texto mais profundo e detalhista para situar os leitores. É um dos elos mais frágeis da publicação em geral.
Muito se fala sobre Drácula e Frankenstein, mas comparativamente, os seus autores se tornaram eclipsados diante dos personagens, digamos, mais fortes e explorados culturalmente no extenso painel de leituras em outras mídias. Esse é um dos pontos de partida do ótimo Drácula e Os Monstros Civilizacionais: Natureza Humana, Civilização e Monstruosidades, de Armando Rui Castro de Mesquita Guimarães, noutra contribuição para a publicação, aqui ainda mais didática, descritiva e repleta de informações para aumentar o nosso repertório sobre o vampiro definidor desta mitologia longeva. Aliás, interessante observar como os textos deste livro, constantemente, fazem conexões com o clássico de Mary Shelley. É preciso notar que este volume é o segundo de uma coleção e, o antecessor, claro, contempla o monstro que ao lado de Drácula, demarcou o começo e o fim, em tons de horror, da literatura fantástica do século XIX. Medo, Imperialismo, a Nova Mulher e a Modernidade são palavras-chave do artigo, texto que antecede Fantástico e Ideologia: O Caso Drácula, de Jean Marigny, autor da abertura desta publicação, agora traduzido por Luiz Antonio Callegari Coppi. Muitos pontos de análise são semelhantes aos demais textos da coletânea, sendo destaque na leitura a utilização do personagem vampiro em campanhas xenófobas durante o período das guerras mundiais que sacudiram a primeira metade do século passado, comprovação do potencial de Drácula muito além da cultura do entretenimento.
Ademais, O Mito de Drácula: Imaginário e Educação é uma leitura densa no sentido volume de informações e perspectiva acadêmica, talvez mais voltado para quem possui maior vínculo com a linguagem dos artigos científicos. Isso, por sua vez, não o faz menos prazeroso no que tange ao manancial de descobertas contempladas com base nas pesquisas alheias. Muito já se falou sobre o personagem icônico de Bram Stoker e mesmo que aqui o leitor encontre informações já demasiadamente apontadas em outros lugares, é interessante observar o cuidado dos editores na exposição das teorias associadas aos processos interpretativos do romance e de suas traduções para tantos suportes narrativos, em especial, o cinema. E, por falar na sétima arte, várias versões do monstro são mapeadas nos artigos, mas o mais citado de todos é o clássico moderno Drácula de Bram Stoker, de Francis Ford Coppola, lançado em 1992. É o filme que ganha destaque em citações e exemplos, além de Nosferatu, de F. W. Murnau, mencionado algumas vezes como a melhor transposição do livro para o campo cinematográfico.
Em linhas gerais, um livro para professores, pesquisadores e interessados no universo de Drácula, o personagem central da história da mitologia vampírica.
O Mito de Drácula: Imaginário e Educação (Brasil/Portugal, 2019)
Autoria: Alberto Filipe Araújo, Rogério de Almeida e Marcos Beccari (orgs.)
Editora: FEUSP
Páginas: 296