A escrita de O Misantropo (e também a sua montagem original, que estreou em 4 de junho de 1666) abarcou um período bastante perturbado na vida de Molière. De problemas familiares a problemas com a censura da Corte imposta às suas peças anteriores (Tartufo e Don Juan), o autor mergulhou em uma fase reflexiva, concebendo uma peça protagonizada por um “odiador da humanidade“, mas que também escancara a hipocrisia do cotidiano da sociedade… e a sua própria. Uma das peças teatrais favoritas de Ingmar Bergman, O Misantropo foi adaptado pelo cineasta sueco em 1974, para a TV da Dinamarca, sendo um de seus vários trabalhos para a televisão com esse caráter teatral.
Eu sempre tive muita curiosidade de ver esse filme, que é uma raridade da filmografia do diretor. Imaginar uma comédia de costumes já originalmente diferenciada — com muito mais elementos puramente dramáticos, intimistas, reflexivos e provocativos do que se espera de Molière ou de uma comédia de costumes — assinada por um artista como Bergman me parecia algo chocante e ao mesmo tempo muito interessante. E devo dizer que essas expectativas foram correspondidas só até um certo ponto.
A abertura do telefilme nos traz o longo e progressivamente cansativo (nesta adaptação) diálogo entre Alceste (Henning Moritzen) e Filinto (Holger Juul Hansen), onde já fica muito clara a abordagem mais densa que Bergman dará para o que Molière pensou. A dinâmica cênica dessa abertura de primeiro ato será observada no decorrer de toda a peça, e embora no momento de discussão entre os marqueses Acaste e Clitandre, lá pelo que seria o terceiro ato da peça, o diretor torne a relação entre o movimento pelo palco e a câmera mais interessante, não existe muita coisa aqui, referente à direção, que chame a atenção. Nos blocos seguintes, especialmente no último (onde todas as máscaras, os fingimentos e as esperadas revelações de caráter vêm à tona) o diretor muda levemente a base de marcação dos atores no palco, assim como as exigências dramatúrgicas para quem está em cena, de modo que o público abraça com melhor gosto a abordagem e acaba conseguindo apreciar muito melhor a obra.
O problema dessa versão de O Misantropo está, portanto, em seu primeiro grande bloco. Sem dinamismo através da câmera e com uma montagem bastante tradicional (aliás, não procure experimentalismo aqui), mesmo para quem já conhece o original, como eu, tem alguma dificuldade em se conectar com a obra, no início, e notem que o enredo começa na comédia e só depois é que avança para a tragédia. Evidente que o bárbaro texto de Molière e as excelentes atuações do elenco terminam por nos cativar para essa toada modesta de Bergman, só que demora um pouco mais do que deveria para isso acontecer, e quando acontece, muito da qualidade do filme já não conseguia subir alguns degraus. Das obras teatrais do diretor montadas para a TV, esta foi a que mais eu ansiei para ver e, infelizmente, a que mais me decepcionou.
O Misantropo (Misantropen) — Dinamarca, 1974
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Molière (tradução para o dinamarquês de Peter Hansen)
Elenco: Hanne Borchsenius, Benny Hansen, Holger Juul Hansen, Paul Hüttel, Henning Moritzen, Erik Mørk, Ghita Nørby, Lise Ringheim, Ebbe Rode, Peter Steen, Olaf Ussing
Duração: 115 min.