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Crítica | O Mestre de Apipucos

Aristocracia e intimidade.

por Fernando JG
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Gilberto Freyre desce as escadas externas de seu palacete enquanto confere o jardim. Ao entrar em casa, seu café da manhã já está na mesa, servido por Manuel, um homem negro que há muitos anos trabalha com a família. Nos momentos seguintes vai à praia, depois volta para o almoço com a esposa enquanto reflete sobre uma cachaça que está ali sobre a mesa. Mais ao fim da tarde, deita-se na rede enquanto lê algo fora da sua especialidade: uma coletânea de Manuel Bandeira ao lado de seu gato.

É compreensível e sintomático que O Mestre de Apipucos (1959) comece não diferente da maneira pela qual se iniciou O Poeta do Castelo (1959): com um foco de câmera na “casa grande” de Gilberto Freyre. Se no filme de Manuel Bandeira a visada para os apartamentos espremidos num espaço minúsculo diziam a respeito da simplicidade, humildade e singeleza do poeta brasileiro; em Apipucos, a exposição da riqueza habitacional com a qual o curta-metragem é aberto evidencia também a mensagem fílmica e o personagem que será apresentado a seguir. A montagem é eisensteiniana, como é típico de Joaquim Pedro de Andrade, e é ela quem conduz o significado das cenas e da obra como um todo. A montagem é irônica e ácida.

Joaquim Pedro manipula com cinismo as cenas da vida cotidiana para que “teoria e prática” entrem em um conflito irônico ao decorrer da película. O homem protoprogressista que escreve Casa Grande & Senzala é colocado no centro de uma contradição latente ao ser exposto ao seu próprio modus-operandi. As câmeras políticas do jovem cineasta revelam que por trás do homem sociólogo há um aristocrata cujas raízes ainda estão profundamente fincadas num passado escravocrata do qual ele é um dos beneficiários.  A “casa grande”, o luxo, a mobília, a prata, a “vida-lazer”, o empregado que lhe serve, a postura de “Senhor” em sua propriedade etc. atuam como uma espécie da ironia social cuja finalidade, na película, é unicamente a ação de desvelar o que está por trás do homem e do nome, do homem e da máscara. A ironia atribui à imagem do homem culto um desenho caricatural, pelo qual se compreende o humor velado da película.

Como as grandes interpretações do Brasil, tal qual a supracitada obra de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda, 1936) e Retrato do Brasil: Ensaio sobre a Tristeza Brasileira (Paulo Prado, 1928), Joaquim Pedro de Andrade faz a sua própria exegese do país a partir de uma fala inaudita e de um roteiro que retira do mínimo das coisas o máximo, que lê cada passo do sociólogo como um reflexo do processo da formação social da nação. Mais do que O Poeta do Castelo, O Mestre de Apipucos constitui-se como o embrião da cosmovisão que despontaria em toda a sua obra a partir de então. 

O Mestre de Apipucos, Brasil, 1959
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, Gilberto Freyre
Elenco: Gilberto Freyre, Madalena Freyre
Duração: 9 minutos.

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