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Crítica | O Menino e a Garça

O grande legado de Hayao Miyazaki.

por Ritter Fan
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Quando Vidas ao Vento foi lançado em 2013, Hayao Miyazaki convocou uma coletiva de imprensa e anunciou sua aposentadoria. Não foi a primeira vez que ele disse que se aposentaria, mas, por toda a pompa e circunstância ao redor do evento midiático em Veneza, além de seus 72 anos bem vividos, imaginava-se que o grande mestre realmente recolher-se-ia em alguma confortável casa no arquipélago japonês para viver seus anos crepusculares. Corta para 2016 e eis que Miyazaki retorna para a animação com o roteiro e direção do curta-metragem Boro, a Lagarta, que seria lançado em 2018 exclusivamente no Museu Ghibli e, depois, no Parque Ghibli, contraindo, com isso, o grave vírus normalmente conhecido como “aposentadoria, que aposentadoria?”, logo iniciando os trabalhos no que viria a ser O Menino e a Garça.

Apesar de Miyazaki ser Miyazaki, a produção do que talvez seja seu último longa (impossível afirmar qualquer coisa com certeza mesmo com ele agora com 83 anos, vide Clint Eastwood fazendo filmes aos 93…) não foi tranquila mesmo internamente, já que ele realmente teve que convencer seus pares de que seu retorno valia à pena, que ele ainda tinha mais uma grande história para contar. Mas, ultrapassados esses obstáculos iniciais, o estúdio então embarcou de coração no projeto, investindo muito dinheiro nele, dinheiro obtido também por meio do licenciamento dos longas anteriores do estúdio para o Netflix (um efeito colateral ótimo, aliás), o que o fez ser uma das mais caras animações já feitas no Japão, algo que se deu também pelos atrasos seguidos sofridos antes e depois da pandemia de COVID-19 pelos mais diversos fatores, um dos mais importantes sendo o cuidado dito excessivo de Miyazaki com basicamente cada etapa da produção.

E, se O Menino e a Garça talvez não seja o melhor filme deste grande nome da animação mundial – um dos últimos grandes nomes da animação mundial, na verdade! -, o que não é problema algum já que a carreira de Miyazaki é pontilhada de obras-primas, ele certamente é uma magnífica forma de encerrar uma vida profissional irretocável e revolucionária, isso se ele a encerrar por aqui, claro. Trata-se de um longa com elementos autobiográficos, notadamente sobre a perda de sua mãe e o relacionamento com seu pai, algo que Miyazaki nunca explicitamente abordou em suas obras, e que bebe de variadas fontes literárias, talvez mais destacadamente de O Livro das Coisas Perdidas, do irlandês John Connolly, Torre Fantasma, do japonês Edogawa Ranpo e de Como Você Vive?, do também japonês Genzaburo Yoshino e de onde o cineasta tirou seu título original. Mas tanto a vida de Miyazaki quanto os romances são como inspirações, panos de fundo sobre os quais o cineasta erigiu uma obra completamente independente do material fonte, que, para mim, bebe muito mais de toda sua filmografia, criando uma amálgama do que veio antes e que chega até mesmo a ser uma espécie de auto-homenagem, mas que, em se tratando de quem é, não é absolutamente demérito algum.

Todo o marketing de O Menino e a Garça ficou em cima do anti-marketing, o que, pessoalmente, para mim, é uma maravilha nesta época absolutamente ridícula em que os filmes, quando lançados, já tiveram todos os seus detalhes divulgados, comentados, estudados e criticados internet afora. Quase nada foi divulgado sobre o longa antes de seu lançamento, nem mesmo uma sinopse, pelo que eu farei o mesmo aqui. Em linhas amplas, o longa, que se passa durante a Segunda Guerra Mundial, lida com o jovem Mahito Maki (Soma Santoki) que, depois de perder sua mãe no incêndio do hospital em que ela trabalhava, muda-se para o campo com seu pai que se casara com a irmã de sua esposa, engravidando-a. Tendo que lidar com trauma e com sua nova vida, Mahito acaba conhecendo uma grande garça que o leva a uma viagem a um mundo fantástico, em uma abordagem que lembra talvez de maneira mais proeminentemente o clássico A Viagem de Chihiro, com toques de Meu Amigo Totoro, ainda que, como já disse, o resultado final seja um filme com características muito próprias, inconfundíveis e inesquecíveis.

Trata-se, talvez, da animação mais fantástica – ou tão fantástica quanto Nausicaä do Vale do Vento – e ao mesmo tempo mais adulta de Miyazaki, características que nem sempre funcionam juntas, mas que o cineasta faz funcionar se e apenas se o espectador comprar o conceito geral do longa que, mais do que uma história linear contada de forma padrão, é longa e variada jornada de amadurecimento de um jovem garoto que é visualmente arrebatadora e original, com criaturas mágicas que podem ser maléficas e boas, além de engraçadas e assustadoras. Se Alice, quando entrou pela toca do coelho encontrou um mundo peculiar que é ao mesmo tempo fascinante e perigoso, Mahito encontra uma montanha-russa imaginativa que parece vir de um colegiado de mentes sob fortes efeitos de substâncias alucinógenas. Diria até que, para todos os efeitos, O Menino e a Garça exerce seu próprio efeito alucinógeno na plateia na medida em que a minutagem avança e os acontecimentos de antes passam a ser amplificados por novos e ainda mais exotéricos acontecimentos, criando até uma espécie de “competição interna” para ver que criatura, que evento, que manifestação audiovisual é a mais bizarra.

E essa completa falta de freios é o que faz do longa uma bela despedida de Miyazaki. O criativo cineasta não tem interesse algum em entregar uma narrativa tradicional, o que óbvia e compreensivelmente pode incomodar muita gente, mas sim o equivalente audiovisual do fluxo de consciência, levando seu Mahito a um frenético delírio multicolorido que parece ser a soma de tudo o que o cineasta colocou nas telas ao longo de toda sua vida. Diria que o cineasta talvez vá um pouco além do que deveria em seus devaneios, de certa forma estendo a obra desnecessariamente, mas essa gana por mostrar mais e mais é perfeitamente compreensível e ainda mais aceitável quando notamos que a técnica de animação, encabeçada pelo também lendário diretor de animação Takeshi Honda, é irrepreensível. Tudo se movimenta em O Menino e a Garça e tudo se movimenta como deveria se movimentar, mesmo as criaturas que inexistem no mundo real, algo que vai desde as lâminas de grama na pradaria em que uma misteriosa torre fica, até os enormes e sinistros periquitos lá pelo final da projeção. E a paleta de cores tendente ao infinito, mas focando nas cores básicas é puro Miyazaki fazendo “mágica da Pixar de outrora que por sua vez fez o que fez inspirando-se no próprio Miyazaki, dentre outros”, só que com animação 2D, deixando muito claro que o mundo do audiovisual ainda tem espaço e, mais ainda, quer a animação clássica da mesma forma que ainda quer produções capturadas em celuloide e efeitos especiais sem computação gráfica.

No entanto, em meio a toda essa mágica alucinógena, O Menino e a Garça traça uma jornada repleta de dor, de dúvidas, de decisões que andam na corda bamba entre a juventude e a vida adulta, entre a inocência e sua perda. A própria garça é um símbolo quase grotesco dessa invisível linha divisória com sua beleza natural transmutando-se para algo estranho, humanoide e, portanto, manchado por impurezas. Deixando a ambientação realista da Segunda Guerra apenas realmente como algo que fica na lembrança, Miyazaki traz para o fantástico as perdas que uma guerra causa e cria um mundo que é lindo em sua superfície, mas que esconde as mais variadas fraquezas humanas logo abaixo, com a torre que Mahito explora funcionando como uma lente que permite a observação do que está além do arco-íris da inocência. O mundo de fantasia que é construído com extremo cuidado, é um mundo essencialmente corroído que o jovem protagonista precisa cruzar e desbravar para entender a si mesmo e, eventualmente, aceitar o que aconteceu com sua  vida do lado de fora da qual ele quer fugir. É, para todos os efeitos o que todos nós – ou muitos de nós – dejesa lá no fundo e Miyazaki, com seu lirismo quase absurdista entrega de sua maneira tão deslumbrante quanto assustadora.

Marcando ou não o verdadeiro fim da carreira de Hayao Miyazaki, O Menino e a Garça é outra estupenda animação na filmografia desta lenda viva que une uma abordagem de cunho pessoal com uma invejável criação de mundo que leva Mahito e os espectadores a uma jornada inesquecível. Experimentar o longa em toda sua grandeza é como viajar por um mundo ao mesmo tempo desafiador e deslumbrante que assusta e faz sorrir, choca e afaga. E, quando os créditos começam a subir, o que fica, dentre as lembranças multicoloridas e dinâmicas, é aquela sensação gostosa de ter visto um grande mestre fazendo aquilo que nasceu para fazer.

O Menino e a Garça (君たちはどう生きるか / Kimitachi wa Dō Ikiru ka – Japão, 2023)
Direção: Hayao Miyazaki
Roteiro: Hayao Miyazaki (inspirado em romance de Genzaburō Yoshino)
Elenco: Soma Santoki, Masaki Suda, Aimyon, Yoshino Kimura, Takuya Kimura , Shōhei Hino, Ko Shibasaki, Kaoru Kobayashi, Jun Kunimura, Keiko Takeshita, Jun Fubuki, Sawako Agawa, Shinobu Otake, Karen Takizawa
Duração:
 124 min.

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