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Crítica | O Melhor Está por Vir

Fazendo cinema.

por Luiz Santiago
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O Melhor Está por Vir (ou O Sol do Futuro, em algumas traduções) é uma reflexão um tanto amargurada e também bem-humorada do diretor Nanni Moretti sobre o “fazer cinematográfico“; sobre a concepção e a seriedade da arte, e sobre o verniz das ideologias que nos cerca — nesse caso, o comunismo e suas muitas linhas de prática política, seus “ismos” históricos, contradições, erros e sensação de “morte massiva” com o passar das décadas (afinal, existiram mesmo comunistas na Itália ou eram todos soviéticos que lá residiam?). Estamos, portanto, diante de um filme de memórias, onde o próprio Moretti vive o protagonista (Giovanni) e expurga seus incômodos com a sociedade contemporânea, com as picuinhas da esquerda (da qual faz parte) e com o mercado e a produção da Sétima Arte. Nessa melancolia diante dos rumos do cinema e de percepções pobres da imagem pelos novos realizadores e pelo público, Gianni acaba assumindo uma postura de louco, caracterizando-se como uma espécie de Ivo Salvini, de A Voz da Lua (1990).

Em termos de filmografia, é lícito dizer que o longa não traz novidades para a carreira de Nanni Moretti, nem como temática principal, nem como construção de personagem. Mas a história tem o seu frescor próprio e sua carga de atualidade, de recorte específico e necessário, representando as distrações e pensamentos intrusivos de um artista ao longo de seu processo de criação (o que explica as dispensáveis cenas musicais do filme — todas deslocadas, apesar de haver uma intenção para sua existência) e a dificuldade de lidar com mudanças. Esse comportamento, porém, não está posto apenas na criação artística do personagem. Seus rituais familiares (assistir Lola, de Demy, a cada 5 anos, por ocasião de um novo filme que está dirigindo) e sua maneira de expressar opiniões, acabam por afastar também a esposa, que não quer mais continuar com a relação.

Já no filme dentro do filme, outra situação de mudança e conflitos acontece. Em 1956, durante a Revolução Húngara, o dirigente do Partido Comunista de uma cidade da Itália recebe um circo vindo da Hungria e enfrenta um grande problema: deve ele condenar a resposta violenta da União Soviética contra os revoltosos de Budapeste ou esperar uma posição amistosa e pró-URSS da diretoria nacional do partido? Assim como na vida pessoal de Gianni, os personagens estão divididos entre amor e as ideias, um conflito que, à medida que o cotidiano do diretor vai tomando rumos tristonhos, recebe novas cores e um novo encaminhamento. E então escancara-se a ideia geral de O Melhor Está Por Vir: apesar de ter dificuldade de aceitar que as coisas mudam, o personagem-cineasta tende a abraçar subitamente as novidades e mudar seus caminhos quando percebe que não há mais jeito, uma contradição comportamental e de ideias que nem ele entende, mas que reconhece existir.

Em todas as camadas, vemos atores vivendo seus personagens de maneira interessantíssima, criando blocos dramáticos bem distintos, abraçando com vigor as mudanças visuais que o artista propõe para cada núcleo. E são tantas e tão boas e necessárias as variações estéticas, que entendemos também a visão artística por trás de toda a “chatice” de Gianni e Moretti, inclusive nas concessões que precisam fazer para que suas obras sejam financiadas e distribuídas. Um outro contraste nesse ambiente pode ser percebido quando chegamos à já famosa cena em que Gianni tem uma reunião (hilária e tenebrosa, por ser absolutamente real) com os investidores da Netflix; e na longa sequência em que ele tenta dar uma aula de composição de quadro e ética da estética cinematográfica para um jovem diretor que acha que violência era poesia shakespeariana.

Na crise criativa e nas escolhas metalinguísticas durante a criação de um filme dentro do filme, inclusive no maravilhoso “desfile de equipe e agregados“, o longa flerta diretamente com Oito e Meio, mas a brincadeira de Moretti com suas influências, pensamentos e inspirações não para por aí. No decorrer da obra, passamos por citações diretas de Caçada Humana (Arthur Penn, 1966) e Um Grito de Revolta (Irmãos Taviani, 1972); e por referências ao próprio cinema do diretor, como Sonhos de Ouro (aqui, Gianni usa a mesma manta de Michele Apicella) e Abril (um diretor esquerdista fazendo um filme sobre comunismo), tudo colocado em um funil para o novo mundo, encarando a realidade e, quem sabe, desistindo de um roteiro sobre um protagonista que se enforca no final, para um desfile amoroso, clichê, mas muito simpático que indica concessões e um olhar mais brando para o mundo. Acima de qualquer coisa, O Melhor Está Por Vir é uma reflexão sobre deixar para trás as ideias que não fazem mais sentido e dar as boas-vindas ao sol do futuro, mesmo que ele incomode na projeção de seus primeiros raios.

O Melhor Está por Vir (Il sol dell’avvenire) — Itália, Frnaça, 2023
Direção: Nanni Moretti
Roteiro: Francesca Marciano, Nanni Moretti, Federica Pontremoli, Valia Santella
Elenco: Nanni Moretti, Margherita Buy, Silvio Orlando, Barbora Bobulova, Mathieu Amalric, Valentina Romani, Flavio Furno, Zsolt Anger, Jerzy Stuhr, Teco Celio, Giuseppe Scoditti, Valerio Da Silva, Angelo Galdi, Arianna Pozzoli, Francesco Brandi
Duração: 95 min.

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