A guerra matou Deus também.
Essa frase, que escutamos saindo da boca do protagonista, traumatizado com os horrores que presenciara na Primeira Grande Guerra, perfeitamente define o tom de O Medo, adaptação do livro La Peur, de Gabriel Chevalier, que traz suas experiências durante esse que fora um dos conflitos mais sangrentos da História. Não há como não pensar imediatamente em Nada de Novo no Front, que traz uma história basicamente idêntica, mas do outro lado das trincheiras – uma realidade assustadora, visto que o terror vivenciado fora o mesmo para ambos os lados. O filme do francês Damien Odoul, assim como o romance de Erich Maria Remarque, é uma obra de caráter pacifista e, de fato, não há como não execrar a violência em todas as suas formas após assistir esse retrato da Grande Guerra.
A projeção é iniciada com uma câmera lenta e narração em off em um bar, ainda no início do conflito. Nacionalistas franceses estão empolgados com a guerra e os jovens ali presentes, todos entusiasmados para se alistarem. A narração do protagonista Gabriel Dufour (Nino Rocher) já cria um desconforto imediato no espectador, ao passo que ele dubla os personagens em seus discursos, enquanto tudo progride na câmera lenta, gerando falas fora de sincronia que, desde já, evidenciam que há algo de muito errado ali, além de perfeitamente ilustrar o pensamento retrógrado que estimula apenas mais mortes, mesmo que do lado inimigo.
O que vemos a seguir, porém, consegue nos assustar mais ainda: jovens se alistando por curiosidade e diversão, ainda ignorantes dos horrores que irão presenciar na guerra. Após um curto treinamento, que mais parece brincadeira, eles começam a marchar para o front de batalha. Seus uniformes azul marinho com vermelho claramente se destacam das outras cores mortas do cenário, simbolizando o entusiasmo e até a ingenuidade dos novos soldados. São cores vivas, que contrastam com as planícies bejes e acinzentadas e com grandes planos abertos, com grande profundidade, o diretor Damien Odoul, consegue mostrar, ao mesmo tempo, que são pequenos dentro de todo aquele cenário e, de fato, a única coisa que importa – a vida prevalece a tudo e não é por acaso que os veteranos das trincheiras voltam com seus uniformes mais apagados. Evidente que há um zelo pelo hiper-realismo, mas não é por isso que a direção de arte não nos traz uma mensagem através de suas composições.
Chegamos, enfim, no front e o que vemos aqui parece ter sido tirado direto de um potente filme de terror. Claustrofobia, loucura, sangue, sujeira e, é claro, a morte, preenchem o quadro, quebrando totalmente a percepção desses jovens da guerra como um grande espetáculo. A alegria vai embora e é substituída por um completo desamparo, aliado à sensação de que são completamente irrelevantes dentro daquele conflito iniciado pelo alto-escalão que jamais irá colocar os pés no campo de batalha.
O roteiro, também de Odoul, espertamente insere o terror gradativamente, começando pelas constantes explosões iluminando o escuro das planícies devastadas, passando pelos terríveis lança-chamas utilizados pelos alemães, até o verdadeiro horror do gás mostarda. Aliado da direção de fotografia de Martin Laporte, vemos uma verdadeira beleza mórbida tanto nas cenas mais escuras quanto nas mais claras. Laporte sabe trabalhar com a escuridão e em nenhum ponto nos vemos perdidos dentro das cenas – cada um de seus quadros parece uma verdadeira pintura e não podemos deixar de admirar cada plano do longa-metragem.
Com um desenho de som surpreendente, somos levados para o centro desse perturbador palco. Das bombas que caem, aos gritos e lamentações, conseguimos ouvir tudo como uma fúnebre sinfonia, intensificando nossa tensão ao máximo, nos imergindo completamente e nos traumatizando junto com os personagens que vemos sofrer em tela. Mais de uma vez Gabriel se entrega ao grito e ao choro, caindo no campo de batalha e permanecendo imóvel – vemos nele a gradativa destruição da humanidade, de sua mente e o longa ilustra isso com algumas inserções, nos mostrando sua amada, Marguerite (Aniouta Maïdel), o único motivo pelo qual ele permanecera são até o fim dessa dolorosa trilha.
De fato, o roteiro sabiamente utiliza a garota para criar a constante narração em off, que permanece do início ao fim da obra, como se o protagonista lesse as cartas que a envia. O recurso é utilizado a fim de contornar a ausência de diálogos na maior parte da projeção, além de evidenciar o que se passa na mente do personagem, que dia após dia, abandona qualquer esperança de retornar com sua humanidade intacta. É uma figura triste e bela ao mesmo tempo essa criada por Odoul, especialmente quando os dois lados passam a enxergar sua irrelevância e a falta de necessidade nesse gigantesco conflito. O drama consegue ser ainda mais amplificado por uma trilha sonora pontual de Colin Stetson, que nos traz melodias marcantes, utilizadas a fim de simbolizar a emoção vivida pelos combatentes nas trincheiras.
Quando o combate passa por uma de suas pausas é impressionante o alívio que sentimos com a interrupção dos bombardeios. Existe um intercalar bastante orgânico entre esses momentos de tranquilidade e os de conflito, que nos oferece um tempo para respirar. O horror, porém, não para – nesses trechos vemos as perdas sofridas, os animais mortos, as planícies desoladas e a crescente loucura de cada um dos soldados. Surpreendentemente, também vemos, em um desses momentos, uma das cenas mais belas da obra, com Gabriel dançando ao lado de combatentes aliados da África, nos mostrando como, mesmo dentro de tanto terror, a humanidade ainda consegue resgatar resquícios de alegria e como isso e não a violência, é a verdadeira natureza humana.
Eu não poderia pensar em um título melhor que O Medo para essa obra de Damien Odoul, uma obra que nos entrega uma união perfeita entre som e imagem com uma mensagem pacifista que nos atinge em cheio. Temos aqui um longa-metragem que verdadeiramente consegue nos mudar – não saímos da mesma forma que entramos na sala do cinema, marcados por essa guerra, que, como qualquer outra, jamais deveria ter acontecido.
O Medo (La Peur) – França/ Canadá
Direção: Damien Odoul
Roteiro: Damien Odoul (baseado no livro de Gabriel Chevallier)
Elenco: Nino Rocher, Pierre Martial Gaillard, Théo Chazal, Eliott Margueron, Frédéric Buffaras, Charles Josse, Aniouta Maïdel
Duração: 93 min.