O Médico e o Monstro é uma das histórias de horror mais adaptadas da história do audiovisual, talvez sendo superado apenas pelo Drácula de Bram Stoker e pelo Frankenstein de Mary Shelley. Claro, existem versões que acabam definindo a imagem cultural desses personagens, e é justo afirmar que no caso de O Médico e o Monstro, a versão de 1920, comandada por John S. Robertson, e estrelada por John Barrymore; e a de 1931, com Fredric March no papel de Jekyll e Hyde, sejam as mais influentes na forma como essa história foi cimentada no imaginário coletivo. Esta adaptação de 1941 do famoso romance de Stevenson reconhece essa influência, inclusive ao seguir de perto muitas das mesmas batidas dramáticas da versão de 1931, mas diferente daquele longa-metragem, o filme falha em estabelecer uma identidade forte para si mesmo.
Na trama, situada em 1887, o Doutor Henry Jekyll (Spencer Tracy) é um respeitado cientista que acredita que a loucura está ligada a um desequilíbrio entre o lado bom e o lado mau do ser humano. O médico acredita que pode ser capaz de extirpar o lado mau da natureza humana através de uma fórmula inventada por ele, e ao testá-la em si mesmo, acaba se transformando em um homem que representa todo o seu lado mau, o insano Sr. Hyde (também interpretado por Tracy). As experiências de Jekyll acabam fazendo com que Hyde se torne uma ameaça para as vidas de sua noiva Beatrix (Lana Turner) e de Ivy (Ingrid Bergman), uma jovem garçonete por quem se sentiu atraído.
Essa versão de 1941 lançada pela MGM talvez seja a adaptação de O Médico e o Monstro que possua um dos elencos com o maior número de estrelas, contando com nomes de peso para o período, como Spencer Tracy e Ingrid Bergman, além de um prestigiado diretor na figura do Victor Flemming, vindo de grandes sucessos como E O Vento Levou (1939), e O Mágico De Oz (1939). Entretanto, embora o cineasta conceda ao filme um visual elegante e atmosférico, inclusive tendo sido reconhecido pela academia com algumas indicações ao Oscar de melhor fotografia, o suspense acaba se mostrando um gênero onde Victor Flemming não parece se sentir tão à vontade.
Como dito acima, o roteiro escrito a oito mãos dever muito a versão de O Médico e o Monstro dirigida por Rouben Mamoulian em 1931, mas diferente de sua inspiração, esse projeto foi realizado durante o auge do Código Hayes, sistema de regras da lei americana que suprimiu boa parte da violência e do erotismo mais explícito no cinema hollywoodiano, o que acabou tirando boa parte da força da obra, já que do jeito como é construído, o roteiro depende muito disso. Não que fosse impossível trabalhar com estes temas na época. Desde cineastas lendários como Alfred Hitchcock, até alguns menos conhecidos como Jacques Tourneur se mostraram muito competentes em driblar o código para poderem contar suas histórias de conteúdo mais intenso, mas Flemming não parece ter essa mesma habilidade, ainda que encontre sim alguns momentos criativos para expor os impulsos mais primários de Jekyll, vide uma febril sequência de sonho, onde as mulheres da vida do cientista são postas em uma clara posição de submissão sexual em relação a ele.
Todo o plot envolvendo o triângulo amoroso que move a trama foi reaproveitado do filme de Mamoulian (adaptando apenas o papel de Ivy, que deixa de ser uma prostituta e passa a ser uma garçonete, tudo para não ferir o Código Hayes) e todo o 3º ato segue a versão de 1931 quase quadro por quadro. Mas longe, bem longe de ter o mesmo brilho e energia do longa de Mamoullian. Quem me conhece sabe que eu não acho que remakes devem ser julgados pelos originais, e sim por si mesmos, mas o filme de Flemming se esforça tanto para emular seu antecessor (filmado no período pré-código, é bom frisar) que praticamente nos obriga a fazer comparações.
Spencer Tracy até se esforça na composição do seu protagonista, mas no fim das contas, parece não ter sido uma escalação muito feliz, não convencendo nem como o médico vitoriano de bom coração, nem como seu alter-ego psicótico. Há um ponto interessante na construção visual do personagem, já que a maquiagem usada para criar Hyde é bem mais sutil nessa versão do que em outras leituras, mas a atuação excessivamente grandiloquente de Spencer como o vilão não parecem conversar com a aproximação entre as duas versões do protagonista que a direção de arte sugere. Ingrid Bergman já tem mais sucesso em retratar Ivy Pearson, o arquétipo da mulher ousada da vida de Jekyll (uma escolha feita pela própria atriz, que inicialmente foi escalada para interpretar Beatrix Emery, a noiva casta do protagonista). Entretanto, o roteiro acaba sabotando o trabalho da atriz com um salto inexplicável de mulher durona e toda segura de si para uma mulher totalmente dominada e aterrorizada pelo Sr. Hyde, sem criar uma transição suave entre esses dois momentos da personagem, um salto que claramente atrapalha a composição de Bergman, e derruba metade do filme, que dependia dessa transição.
O Médico e o Monstro de 1941 não é um filme completamente descartável, tendo muitas qualidades, especialmente em retrato de uma Londres gótica sufocante. Mas se eu tivesse que recomendar uma adaptação cinematográfica do livro de Robert Louis Stevenson para alguém, eu sugeriria o filme de 1931, já que a versão de Victor Flemming infelizmente parece se contentar em ser apenas uma sombra pálida do projeto comandado por Mamoullian.
O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll And Mr. Hyde) — EUA, 1941
Direção: Victor Flemming
Roteiro: John Lee Martin, Percy Heath, Samuel Hoffenstein (Baseado em Romance de Robert Louis Stevenson)
Elenco: Spencer Tracy, Ingrid Bergman, Lana Turner, Donald Crisp, Ian Hunter, Barton MacLane, C. Aubrey Smith, Peter Godfrey, Sara Allgood, Frederick Worlock, Frances Robinson, Denis Green, Billy Bevan, Lumsden Hare, Lawrence Grant, Martha Wentworth, Lionel Pape. Brandon Hurst, Forrester Harvey
Duração: 113 Minutos