Desde que os grandes Estúdios de Hollywood perceberam o potencial monetário e as imensas possibilidades de experimentação no campo das adaptações de quadrinhos, o cinema tem recebido levas e levas desse material. Está claro que muitas adaptações não acrescentam nada à cultura cinematográfica e, quando muito, servem apenas para encher os olhos de “ópio óptico”. Entretanto, se direcionarmos os olhos para além dos compromissos sociais e políticos e das viciadas abordagens puramente ideológicas, poderemos encontrar obras de apurada constituição formal e estética, porém quase nunca narrativa. Vale citarmos aqui o visualmente fenomenal Sin City (2005), baseado nos quadrinhos de Frank Miller, e Watchmen (2009), dos quadrinhos de Alan Moore e Dave Gibbons. Do Universo da Marvel, compondo essa onda de adaptações, surge entre sangue, balas e ultraviolência, O Justiceiro: Em Zona de Guerra (2008), o terceiro filme baseado nas HQs criadas por Gerry Conway, Ross Andru e John Romita, na década de 1970.
Dirigido por Lexi Alexander, O Justiceiro: Em Zona de Guerra mostra elementos até então não vistos, abordados com menor intensidade ou até mal trabalhados em outros filmes, tendo sido diminuídos por uma linha que priorizava outras questões, em geral, morais. E se é preciso enumerarmos as boas razões para o filme de Lexi Alexander ser um destaque, comecemos deste ponto: o Justiceiro não tem moral alguma. Assim como nos quadrinhos, (em par com Conan e Motoqueiro Fantasma), o Justiceiro é a representação de um anti-herói exterminador, que, apesar de ter pontos de “humanidade”, é totalitariamente contra os “inimigos da lei”.
Tanto a personagem principal quanto o filme, por seu conteúdo ideológico, são rancorosos, amorais e insaciáveis de sangue. A teoria da ação pela situação é a linha-base para a história se desenrolar. E tudo funciona diante de uma história tríplice (o passado de Frank Castle, a vida de Retalho e a insípida participação do FBI) que se dá pela ação-reação em cadeia durante as quase duas horas do filme.
O roteiro de Nick Santora e Art Marcum é extremamente simples: um homem, ao ter sua família assassinada, busca vingança matando qualquer criminoso que aparecer em seu caminho. Então, os elementos-causa dessa violência começam a aparecer. Está dado o filme. Mas a diretora adapta a obra de forma brilhantemente competente, evitando os erros crassos normalmente encontrados nesses filmes de ultra-ação e cometendo os poucos erros-armadilha, aqueles que se dão pelas cenas que tentam explicar (sempre sem muito sucesso) o passado ou uma situação específica até então desconhecida pelo espectador.
A montagem, nesse sentido, procura ocultar as falhas narrativas criando, elipse por elipse, os mais diversos espaços urbanos e integrando-os aos discrepantes espaços internos dos sets. Como exemplo, chamo atenção para a sequência em que Retalho e seu irmão saem em busca de um exército para eliminar o Justiceiro. O jogo narrativo feito através da montagem consiste em uma voz em off integrando-se às cenas em diversos espaços de tribos do subúrbio, que se mixam à figura repugnante de Retalho discursando à frente de uma projeção da bandeira dos Estados Unidos e que se alterna com cenas externas dele e de seu irmão indo em direção a cada um desses espaços. Uma história que, apesar de medíocre em seu conteúdo dramático-narrativo, é concebida com rigoroso apuro formal e estético, principalmente fotográfico, o que torna toda a ação ainda mais interessante.
A fotografia de Steve Gainer supera expectativas. Embora trabalhe com uma paleta de cores muito restrita (vermelho ou laranja para as cenas de violência, verde para a delegacia, azul para o abrigo de Castle) ele a usa de modo a lembrar o impecável Christopher Doyle. Cada cor é empregada por uma contrastante e uma aproximada e nenhuma sequência “similar” foi posta como sucessora da outra. O filme ganha um visual fortemente exótico, positivamente excessivo em alguns momentos, com luzes por todos os lados, uma verdadeira poluição visual em iluminação que não enfeiou a obra, muito pelo contrário.
Dos atores, só vemos representação de verdade a partir do meio do filme. O início, retirando os já citados elementos estéticos, é fraco, mas compensado por uma rápida e móvel montagem. A própria história do filme, apesar de esbanjar ação desde o início, só ganha verdadeiro fôlego após Billy, o Belo transformar-se no desfigurado Retalho, o que nos remete ao caso Coringa X Batman. Outras referências cinematográficas podem ser encontradas: a ultraviolência e as gangues de Laranja Mecânica, os saltos no telhado de Matrix, as mortes sangue-mutilação das obras de Quentin Tarantino, o “espírito do Exterminador” de James Cameron, a psicopatia de Taxi Driver. Desse modo, a riqueza formal da película mesmo não sendo essencialmente original é um louvor à arte cinematográfica.
A maquiagem, mais do que em qualquer outro tipo de filme, é essencial nessas caracterizações vindas dos quadrinhos. Desfigurar o rosto de Dominic West a ponto de torná-lo irreconhecível é resultado de um ótimo trabalho e isso se repete em vários casos deste filme. A música fecha o ciclo, com a junção do heavy metal ao suspense orquestral.
Embora não seja um filme perfeitamente fechado, O Justiceiro: Em Zona de Guerra, mostra que os filmes de ação e violência vindos das HQs podem seguir seu caminho comercial tranquilamente mesmo usando elementos mais autorais para sua composição. Isso, porém, tem seu preço: aquele de o público não ir vê-lo, o que pode acarretar o habitual fracasso de bilheteria, como foi o caso deste filme. Mas, em se tratando de produto fílmico, não podemos nos esquecer que é deste material de risco que é feito o cinema contemporâneo.
O Justiceiro: Em Zona de Guerra (Punisher: War Zone, EUA/Canadá/Alemanha – 2008)
Direção: Lexi Alexander
Roteiro: Nick Santora, Art Marcum, Matt Holloway
Elenco: Ray Stevenson, Dominic West, Doug Hutchison, Colin Salmon, Wayne Knight, Dash Mihok, Julie Benz, Stephanie Janusauskas, Mark Camacho, Romano Orzari, Keram Malicki-Sánchez, Larry Day, Ron Lea, Tony Calabretta
Duração: 103 min.