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Crítica | O Insulto

por Gabriel Carvalho
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“Ninguém tem o monopólio do sofrimento.”

O Insulto é, primeiramente, um filme sobre política, não por necessariamente trabalhar os meandros políticos que conhecemos superficialmente e bradamos como corruptos e vis, mas por trabalhar o quê de politicagem inerente a todos nós, quer que nós o abracemos como um companheiro, quer que nós sejamos engolidos pela sua natureza. O ser humano é um ser político. Um insulto ordinário, na premissa do filme, vai aos poucos ganhando proporções cada vez maiores, intensificando debates na sociedade libanesa, promovendo o caos entre aqueles que não se importam em parar e refletir. A primeira nomeação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para o Líbano é importantíssima, porque realça a existência das tensões no país, promove conversas válidas, o que não quer dizer que o filme seja panfletário, buscando tomar posições concretas, ditando o que é certo e o que é errado, quem está certo e quem está errado, doutrinando o seu espectador de uma maneira óbvia sobre determinando assunto.

O diretor Ziad Doueri personifica a câmera cinematográfica, fazendo-a mudar de opinião a todo instante. A vida possui mais camadas. O intolerante, por mais difícil que isso soe, também tem o seu lado e devemos entendê-lo para ousarmos mudá-lo, caso seja possível um acontecimento da espécie, mesmo que o ético aparente ser deveras óbvio na nossa cabeça. Será que discursos de amor, de compreensão, de reflexão, até mesmo para aqueles que negam estar no erro, seriam uma solução? O que fazer em casos dificílimos, como as crises ideológicas no Oriente Médio, onde a situação vai muito mais além do mais compreensível preto e branco? Um impasse ainda mais complexo que o que vivemos no Brasil, por exemplo. Pode ser que sejamos todos vítimas ou que, em contrapartida, só precisemos da verdade, de perdoar. O que quer que seja, O Insulto definitivamente nos faz pensar. A mensagem por trás, mesmo com alguns equívocos narrativos, não é abalada em momento algum, continuando forte e provocativa.

A pauta sobre os limites da liberdade de expressão, dentre muitas temáticas, recebe comentários, assim como o racismo. O roteiro de Doueri e Joelle Touma, na comparação com o conflito racial nos Estados Unidos, revela ser muito mais universal do que regional. O panorama geral pode ser atribuído a muitos conflitos diferentes, contudo, existem detalhes que diferem e tornam nossas “guerras civis”, nas ruas ou nos palanques, únicas, proporcionalmente complexas, mas ainda assim complexas. Será que necessitamos de mais filmes como esse? Será que necessitamos passar por situações como essa para aprendermos a tolerar o outro? Será que necessitamos parar por duas horas, abrir nossas mentes, e perceber o quão estúpidos estamos sendo com nossos irmãos? A calmaria quando a tempestade já se instaurou possui espaço? Em meio a descrença, o caminho é o radicalismo? O mundo talvez se tornasse melhor se acreditássemos em um conjunto humano, em poderes atuando universalmente.

Se olhássemos o próximo não pelas nossas diferenças, mas pela nossa semelhança maior: o fato de sermos todos seres humanos. Esqueçam as nações, as tribos, os grupos, as raças, as orientações sexuais, os gêneros, as bandeiras e as religiões. Pensem no homem como homem e se identifique com ele por ele ser, afinal, uma variação de você mesmo, singular mas ainda assim intrinsecamente parecida. Nossas identidades deveriam tornar o mundo mais único, não individualista. Parafraseando O Grande Ditador, “neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades.” Um discurso bastante utópico, não é? Tão simples, mas tão distante, todo esse devaneio de um mundo melhor também pode ser encontrado no filme de ficção científica, A Chegada, aliás. Com as muitas divagações deixadas de lados, vamos partir para o longa-metragem, um forte drama de tribunal, uma produção libanesa crucialmente importante, verdadeiramente necessária para o nosso mundo.

A dupla de protagonistas, no plano narrativo, possui um ótimo arco. O libanês, apoiador do Partido Cristão, Tony Hanna (Adel Karam), que adentra terras polêmicas ao decidir processar o refugiado palestino Yasser Salameh (Kamel El Basha), após uma série de desentendimentos, agressões e insultos, tem sua história contada. Karam transpõe uma personalidade mais fria, referente a relação entre seu personagem e Yasser, enquanto Kamel faz o contrário, soando muito mais passivo, ao passo que desenvolve o orgulho ao seu próprio modo. A arma é a tragédia. O ataque é gatilho para a fúria, para a possibilidade de mais uma outra tragédia ser fecundada. O meio provoca. Tony também conta com Shirine, interpretada por Rita Hayek, sua esposa grávida, voz da razão e dispositivo narrativo para levar o personagem de um ponto para outro. A hipocrisia religiosa é ilustrada em um diálogo certeiro, com o libanês se julgando conscientemente diferente de Jesus. Sigam-me os bons, imitem-me os sábios.

Os dois protagonistas, porém, possuem mais camadas, que se revelam nos momentos oportunos, e permitem que nós nos afeiçoemos a jornada de ambos. Aos poucos, se percebe que Tony e Yasser possuem muito mais semelhanças do que aparentavam. O roteiro, ainda por cima, apresenta e desenvolve naturalmente alguns aspectos que interessam aos espectadores durante as operantes exposições em discursos no tribunal, com exceção de um momento no qual as coisas tornam-se verborragicamente desnecessárias, explanando, no clímax, tudo que cenas anteriores já haviam dito. O incômodo perante a redundância. As situações ficam mais manipulativas quando o diretor decide expor certas suavizações de seus personagens em uma cena dentro de um estacionamento a céu aberto, mais auto-indulgente do que necessária para a transformação daquele relacionamento, mas, fora isso, o tribunal é um ambiente perfeito para as maçãs podres serem reveladas do pomar.

Wajdi (Camille Salameh) e Nadine (Diamand Bou Abboud), portanto, surgem como movimentadores da narrativa no que tange essa questão de enredo, com discursos inflados, inseguranças e conflitos pessoais. O que falta no roteiro é o entendimento, por parte do espectador, de que há algo em jogo além da disputa entre palestinos e libaneses. Seria mais interessante se fosse incitada a possibilidade da perda, seja de qualquer oposição, acarretar consequências substanciais nas vidas privadas dos advogados. Quando pensamos nos protagonistas, a situação é diferente, mesmo que a questão do emprego de Yasser se perca pela metade da obra. Ziad Doueri mostra sua capacidade na direção, dando dinâmica e apreensão aos monólogos, abrindo espaço para que o montador brinque com as possibilidades de coesão. Em certos momentos, o diretor faz com que Yasser e Tony se complementem em um mesmo enquadramento, o que mostra sua intencionalidade no filme e sua técnica.

A trilha sonora dessoante, mal encaixada em um trabalho que se valeria mais de uma melodia singela, porém, não vale a nossa atenção. Como exemplo, um plano aéreo pelo final da projeção é acompanhado de uma carga sonora pesada que não faz paralelo com nada em termos dramáticos, queixando-nos, portanto, de uma certa injustificabilidade, soando gratuita. Um adjetivo – gratuito -, no entanto, extremamente injusto para O Insulto, quase que uma antítese para a gratuidade temática à beira da banalidade, que acompanha outras produções, retomando assuntos passados, mas sem relacioná-los com o presente. Os relatos são sempre mais interessantes quando estão acompanhados de um embasamento no presente, como acontece nesse excelente filme libanês. Um longa-metragem com a surpreendente capacidade de promover esperança aos seus espectadores, uma saída para o caos. Um trem desgovernado que no último minuto poderá encontrar um maquinista para o guiar.

O Insulto (L’insulte) – Líbano/França, 2017
Direção: Ziad Doueri
Roteiro: Ziad Doueri, Joelle Touma
Elenco: Adel Karam, Kamel El Basha, Camille Salameh, Diamand Bou Abboud, Rita Hayek, Talal Jurdi, Christine Choueiri, Julia Kassar, Rifaat Torbey, Carlos Chahine
Duração: 112 min.

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