Criada em 1941, na All Star Comics #8, a Mulher-Maravilha sempre foi um símbolo feminino (e com o passar dos tempos, também feminista) de enorme importância para as HQs. Acompanhando a forma como a indústria dos quadrinhos e a própria a sociedade americana tratavam a mulher, a super-heroína se comportou de diferentes maneiras e vestiu diferentes “máscaras” ao longo das décadas, adequando-se não apenas aos novos tempos, mas às exigências e direções editoriais da DC Comics.
Em 1968, a personagem passou por uma revolução. Com uma mudança de equipe criativa, com roteiro de Dennis O’Neil, arte de Mike Sekowsky e finalização de Dick Giordano, a personagem mudou a sua “identidade civil” e viu seus poderes irem embora. Uma nova era para a Mulher-Maravilha surgia. E é sobre uma parte desse período que a crítica abaixo fala.
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Mulher-Maravilha Vol.1 #178 – 184
A edição #178 da revista Mulher-Maravilha (Wonder Woman’s Rival) teve como objetivo mostrar novos rumos para a personagem naquele final de década. A trama começa com uma ação interessante, mostrando Steve Trevor sendo acusado injustamente de ter assassinado Alex Block, um babaca que havia se engraçado com Diana em uma festa na noite anterior. O texto de Dennis O’Neil serve mais para mostrar a mudança civil de Diana Prince, que muito repentinamente deixa de ser enfermeira da Força-Aérea Americana e encarna a personalidade de alguém mais descolada, mais ligada com o mundo lisérgico do final dos anos 60. No final da história, a Mulher-Maravilha lamenta que Steve não tem o mesmo olhar para ela que ele tem para Diana e esta é mais uma deixa para mostrar outra mudança que também aconteceria, agora na própria heroína.
Embora o nível de empolgação do leitor para com o arco (que não é bem um arco: a história não se fecha, apenas é interrompida para dar lugar a outra série de acontecimentos) se altere consideravelmente ao longo das edições, é apenas do meio para o final que a qualidade do enredo cai, muito por conta da forma como O’Neil e, na edição #182, Mike Sekowsky — que também era responsável pela arte — exibe Diana. A esta altura, nós entendemos que ela não tem mais poderes e que é, para todos os efeitos, uma “mulher comum”, mas a memória dela não foi apagada, nem sua experiência de vida, astúcia ou personalidade. É profundamente irritante ver uma personagem com a história de Diana agir como uma garotinha em apuros, ouvindo desaforos de um homem babaca que a acompanha por um tempo antes de traí-la e cai em prantos porque outro cara mente para ela, dizendo que a amava, quando na verdade estava a serviço da grande vilã dessas edições, a Doctor Cyber.
A mudança que traz a Nova Mulher-Maravilha para os quadrinhos acontece na edição #179 (Wonder Woman’s Last Battle), onde sabemos que as Amazonas já estavam há 10.000 anos na Terra ajudando os homens a ganhar maturidade e que este período de tempo esgotou sua mágica. Elas precisam ir para outra dimensão descansar, recarregar os poderes. Diana lamenta, mas escolhe ficar para ajudar Steve Trevor (!). Há um belo ritual de renúncia (ela sabia que no momento em que a ilha fosse para outra dimensão, seus poderes desapareceriam), mas tudo acontece muito rápido, como se o roteiro não quisesse dar tempo para o leitor pensar em detalhes. É aqui que surge pela primeira vez o velho monge expert em artes marciais I-Ching que sabe quem é Diana e se oferece para triná-la, pois eles possuem um inimigo em comum: Doctor Cyber.
Novamente, a história traz bons momentos na relação entre Diana e I-Ching, que é cego, mas tem uma habilidade tremenda, sendo uma espécie de Demolidor + Punho de Ferro (sem o poder do punho de ferro). Vemos Diana fazer referência aos quadrinhos Penauts, citando a famosa frase de Snoopy em suas batalhas mentais na I Guerra Mundial contra Manfred von Richthofen, o Barão Vermelho. Nas tirinhas, essas batalhas começaram em outubro de 1965, então a referência é fresquinha, por assim dizer. Já na edição #180 (A Death for Diana!) Steve Trevor assume outro núcleo de ação, voluntariando-se para uma missão onde deve parecer ser um espião, um traidor dos Estados Unidos. Ele morre nessa edição e o leitor percebe que isso foi uma ótima decisão do autor e da DC, pois livrava a “desempoderada” Mulher-Maravilha de correr como um cachorrinho para salvar Trevor em cada enrascada que ele se metesse. Aparece também, primeira vez, o infame Tim Trench e a primeira mostra da Di Prince’s Boutique — que depois seria Mod-Ly Modern, a loja de roupas de Diana. É estranho que a considerada “primeira aparição” da loja seja marcada na edição #179 mas a única coisa que temos ali é o local onde seria o estabelecimento, não a loja em si. Vai entender a DC…
Em The Wrath of Dr. Cyber (edição #181), viajamos para Bjorland, país fictício da Europa onde Cyber mantém uma base. Também lidamos com o sequestro de Tim e vemos I-Ching tentando hipnotizar uma serva da vilã, que ficou para trás. Na revista seguinte, A Time to Love a Time to Die!, pululam inúmeras inserções machistas do roteiro de Mike Sekowsky, além de surgirem as maiores incoerências de personalidade de Diana em toda essa pequena saga, principalmente ao lado de Reginald Hyde-Whyte, que age como um bem-feitor que faz tudo pelos mocinhos e Diana e Ching sequer suspeitam que ele pode ser um vilão. É desafiar demais da boa vontade do leitor, não é mesmo? A coroação da estupidez vem com Diana agindo como uma garotinha apaixonada. Reginald passa algumas horas com ela e diz que a ama e que quer se casar… e tudo indica que ela acredita nisso!!! No final, vemos que Diana se entrega inteiramente aos sentimentos e sai correndo como uma debutante pelas ruas de Londres, largada pelo meninão mulherengo. Patético até não poder mais.
Uma nova onda de mudanças de perspectiva aprece no final dessa edição, com a estreia da Amazona Drusilla vestida em trajes de guerra, chamando Diana de volta para a Ilha. As duas edições seguintes trazem uma batalha familiar. Ares, o deus da guerra e pai de Hippolyta nessa fase da DC, quer da filha o segredo da viagem dimensional, entregue a ela pelo próprio Zeus. A negação da rainha em entregar o segredo e sua subsequente queda em um sono amaldiçoado força as Amazonas a chamarem Diana. As revistas #183 e 4 (Return to Paradise Island e The Last Battle) saem dos problemas mundanos de Diana e colocam-na em um cenário interessantíssimo de guerra entre deuses. Ela ainda não tem os poderes de volta, mas age como a Amazona que conhecemos, inclusive quando vai recrutar antigos heróis mitológicos como Rei Arthur, Lancelot, Roland, Siegfried e volta inicialmente com com Guinevere, Brunhilde e as Valquírias para enfrentar o avô e outros deuses. O grande problema dessas edições, especialmente a #184 é a arte de Mike Sekowsky (claramente escrever o roteiro e desenhar não estava funcionando para ele), que perde a oportunidade de ouro de fazer ótimos quadros de batalha. Com tanto personagem importante, é ridículo ver as cabecinhas deformadas no meio de uma multidão que ele desenha para representar a guerra.
Esta primeira fase de mudanças na série da Mulher-Maravilha é majoritariamente divertida, embora existam momentos irritantes e enraivecedores. Diana está claramente tentando se encontrar e sua relação com problemas terrenos e no mundo dos deuses vão ser o mote de todo o restante da saga, que duraria até a edição #204 (The Second Life of the Original Wonder Woman, publicada em fevereiro de 1973). Nessa primeira leva de histórias, a presença do monge I-Ching tem como função o treinamento marcial e até de olhar de Diana para o mundo. Sem poderes, ela precisava de um guia experiente (ironicamente I-Ching é cego e sim, isso é utilizado como elemento filosófico e simbólico nas histórias) para agir melhor nesse “novo mundo”. Como é de se esperar, essa fase moldaria para sempre o tom das tramas da Mulher-Maravilha, que passou a transitar de maneira mais orgânica entre um mundo e outro, agora com o benefício da real experiência.
EUA, outubro de 1968 — outubro de 1969
Roteiro: Dennis O’Neil (#178 – 181), Mike Sekowsky (#182 – 184)
Arte: Mike Sekowsky
Arte-final: Dick Giordano
Letras: John Costanza
Capas: Mike Sekowsky, Dick Giordano, Gaspar Saladino
Editoria: Jack Miller