Pensando friamente, uma adaptação televisiva do Hulk tinha que ser muito mais difícil, em termos visuais, do que a do Homem-Aranha. Afinal, estamos falando de um cientista que, depois de ser bombardeado por raios gama de uma explosão nuclear, transforma-se em um monstro verde gigantesco e extremamente poderoso que enfrenta outras criaturas tão ou mais bizarras do que ele. Um jovem em idade escolar (ou universitária, como acabou sendo na década de 70) vestindo um uniforme colorido e andando pelas paredes, perto do Gigante Esmeralda, tinha que ser comparativamente tranquilo.
Mas, mais uma vez, a história cinematográfica mostra que tudo depende de roteiro, com cabeças pensantes em sua execução para que seja possível driblar toda sorte de problemas com inteligência e inventividade. Afinal, o saldo super-heroístico da Marvel em 1977 foi exatamente o contrário do senso comum, mesmo que com semelhante grau de sucesso: o telefilme do Homem-Aranha sofreu em qualidade e aí não restrita a efeitos especiais, também – e especialmente em termos de história -, enquanto que o do Hulk (o primeiro de dois no mesmo ano, vale lembrar) mostrou o verdadeiro significado da palavra adaptação inteligente.
O produtor e showrunner Kenneth Johnson, que também dirigiu e escreveu o roteiro do telefilme de origem do super-herói inspirado em O Médico e o Monstro, e que serviu de backdoor pilot para a série que estrearia no ano seguinte, extirpou tudo aquilo que, à época e com o orçamento que tinha à disposição, seria impossível de transpor para as telinhas em uma obra live-action. Saem explosões nucleares e monstros gigantescos e super-poderosos e entra um drama surpreendentemente intimista sobre um homem torturado pela culpa por não ter conseguido salvar a esposa em um capotamento tentando descobrir qual é o limite da força humana em uma situação de stress extremo. A solução é simples, elegante e, mais do que isso, consegue manter intacto o espírito da criação de Stan Lee e Jack Kirby.
Muito da força da história vem da atuação do saudoso Bill Bixby, ator talentoso e já à época consolidado em sua carreira televisiva que empresta um ar sofrido e melancólico para David Bruce Banner, aqui um cientista médico que, junto com a Dra. Elaina Marks (Susan Sullivan), investiga fenômenos em que pessoas aparentemente comuns conseguiram feitos extraordinários de força, salvando entes queridos no processo. A química de Bixby e de Sullivan é imediata e a história-base é rapidamente estabelecida com um flasback/pesadelo que revela detalhes sobre o acidente de Banner seguida de um pouco de texto expositivo para situar o espectador em relação às premissas da narrativa. Mas a dupla protagonista consegue até esvaziar a impressão de didatismo pela conexão que eles estabelecem e pelo uso de entrevistas com pessoas que viveram esses momentos efêmeros, mas vitais, de força extrema, dando uma roupagem científica – mesmo que completamente fora da realidade, mas realidade em um filme do Hulk não é algo tão importante assim – para o longa. Como antagonista, o longa introduz o repórter enxerido Jack McGee (Jack Colvin) que, mesmo tendo participação tímida nesse início, ele cumpre uma função bem específica, com o ator já deixando bem evidente a natureza teimosa do personagem que é parte integral da mola propulsora da série.
Claro que eu não poderia deixar de fora Lou Ferrigno como a personalidade verde e superforte de David Banner, com direito a uma tenebrosa peruca (que melhora bastante na série), próteses no rosto (também posteriormente suavizadas) e, claro, algumas demãos de tinta verde (essas mantidas firmes e fortes, ainda que a ideia original do showrunner fosse usar a cor vermelha, mais relacionada com a raiva, algo que Stan Lee correu para impedir, mas que a Marvel Comics usaria anos depois). A grande verdade é que o fisiculturista que talvez ainda seja a mais famosa versão do Hulk não foi a primeira escalação, tendo que ser chamado às pressas para refilmar tudo o que tinha sido feito por Richard Kiel, então recém-saído de seu papel de Jaws, em 007: O Espião que me Amava. Apesar de sua estatura, o ator não impressionou Johnson em termos de corpulência, com a única imagem dele como o monstrão verde sendo o momento em que ele olha para uma árvore que o personagem usa para salvar uma menina em um lago.
Hoje em dia, é muito fácil virar o rosto para Ferrigno pintado de verde e um Hulk de tamanho bem mais humano com grande força, mas nada realmente fora desse mundo. Até o telefilme em si tenta fazer o personagem ser bem maior do que é quando McGee chega com uma ridiculamente enorme “pegada” em gesso logo depois que Banner se transforma pela primeira vez. Mas a grande verdade é que, se nos despirmos do preconceito e nos desapegarmos do que está exatamente nas páginas dos quadrinhos, onde tudo vale, notaremos que esse Hulk mais humanizado é a perfeita contrapartida para o Banner sensível de Bixby, em um ambiente, claro, de orçamento contido. Há uma equivalência que foge dos caros exageros pirotécnicos que potencialmente tornariam o personagem bem menos crível aos olhos do que um halterofilista verde rugindo com a voz de Ted Cassidy. O resultado é que, do seu jeito camp, a coisa funciona até muito bem.
Somando a isso a excelente trilha sonora que é construída ao redor da famosa balada “The Lonely Man”, de Joe Harnell e voilà, eis que a CBS conseguiu entregar uma surpreendentemente fiel, ainda que econômica primeira versão live-action do Gigante Esmeralda que consegue deixar no chinelo a do Aracnídeo. Um feito que marcou sua época e que até hoje mesmo os mais cínicos serão capazes de comprar e apreciar.
O Incrível Hulk (The Incredible Hulk, EUA – 1977)
Direção: Kenneth Johnson
Roteiro: Kenneth Johnson
Elenco: Bill Bixby, Lou Ferrigno, Susan Sullivan, Jack Colvin, Susan Batson, Mario Gallo, Eric Server, Charles Siebert, Terence Locke (Terrence Locke), June Whitley Taylor, George Brenlin
Duração: 95 min.