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Crítica | O Império da Paixão (1978)

“Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”.

por Pedro Roma
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‘’Ó deuses da purificação, criados por ordem do pai e da mãe que habitam o Céu, justamente quando o Deus Izanagui no Mikoto se banhou na foz estreita de um rio coberto por árvores permanentemente frondosas, na região Sul. Com todo o respeito e do fundo do coração pedimos que nos ouçam, tal como o equino que ouve atento, com ouvidos aguçados e, juntamente com os demais deuses do Céu e da Terra, purifiquem todas as maldades, desgraças e pecados. Miroku Oomikami, Abençoai-nos e protegei-nos.’’

(Oração japonesa de purificação Amatsu Norito)

A Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) passou como um rolo compressor em Impérios, Nações, velhas certezas e suas tradições, desregulando de vez a balança geopolítica que, desde 1914, no fim da primeira grande guerra, já estava desbalanceada. O Japão, que era parte do Eixo junto da Alemanha nazista e da Itália fascista, após perder a guerra e sofrendo dois grandes traumas no processo – a destruição atômica de Hiroshima e Nagasaki e o desvelamento do véu que separava o ‘’sagrado’’ imperador Hiroito de seu povo – se encontraria dominada e tutelada pelo grande vencedor da Guerra, os Estados Unidos da América, pelo menos até o acordo assinado por ambos os Países em 1951. Obviamente, uma situação assim traria consigo uma forte crise política e institucional. Após a descrença total para com as autoridades governamentais e a condição submissa do País a uma potência estrangeira, estudantes universitários se uniram, resultando no Zengakuren, o movimento estudantil japonês, sobre o qual a citação a seguir se refere:

‘’O movimento estudantil japonês do pós-guerra começou em meio a uma sensação geral de frustração após a falência da greve geral. Os estudantes demandavam primeiramente a expulsão dos professores que haviam desempenhado um papel criminoso na guerra imperialista passada e a reabilitação dos professores progressistas que, ao contrário, tinham sido expulsos das universidades durante a guerra por conta de seu pensamento autônomo. Este movimento significou uma luta para retomar o campus e os dormitórios estudantis do julgo da direção militar e direitista para recuperar a independência e a liberdade acadêmicas. O segundo tópico da luta era a defesa e a reconstrução da educação, incluindo uma demanda para a cobertura de despesas para o reparo de prédios universitários danificados durante a guerra. No desenrolar destes movimentos, os estudantes começaram a estruturar organizações estudantis independentes, ou corpos estudantis autônomos como organizações compreendendo TODOS os estudantes de cada universidade.’’

(Zengakuren: o movimento estudantil no Japão – Kyohei Takahara) 

Nesse contexto beligerante, uma nova juventude precisava expressar-se e representar as grandes rupturas e hipocrisias que fundamentavam esse novo Japão. É quando um grupo de jovens cineastas decide quebrar com as regras e convenções sociais daquele período, principalmente no âmbito artístico e cultural, plasmando na realidade filmes políticos, violentos e, por vezes, obscenos. Entre os grandes nomes da chamada Nuberu Bagu ou a Nova Onda do Cinema japonês (em clara referência ao movimento homônimo francês, a Nouvelle Vague) temos Yoshishige Yoshida, Masahiro Shinoda, Shōhei Imamura e Nagisa Ōshima, o diretor do filme aqui analisado, O Império da Paixão (1978). 

Ōshima iniciou sua carreira em 1959 com Cidade de Amor e Esperança, mas as novas propostas estéticas e narrativas começaram a vir apenas em 1960 com Juventude Desenfreada. Ainda no mesmo ano, ele lançaria Túmulo do Sol e a obra-prima Noite e Neblina no Japão, ambos sobre uma juventude rebelde, violenta, politizada, mas sem rumo e mesmo organização. Apesar de muitas outras obras lançadas posteriormente, será apenas em 1978, com o provocante O Império dos Sentidos, que seu nome será catapultado para o mercado internacional, onde ele desfruta de grande prestígio. 

Sem dúvidas o trabalho do diretor é robusto, com grande destaque para sua mise–en–scene e criação de atmosfera, e para além das falsas polêmicas levantadas em relação a alguns de seus filmes, podemos afirmar que, apesar de suas obras serem bastante divisivas e provocantes, o ponto focal são as relações políticas e sociais do mundo a seu redor. Como aponta o crítico Rafael Amaral em seu artigo Nagisa Oshima, um diretor único: Em entrevista a Lucia Nagib, contida no livro Em Torno da Nouvelle Vague Japonesa (Editora da Unicamp), o cineasta diz que “talvez 1960 tenha sido o momento que marcou o surgimento do cinema independente e do cinema “dos diretores” ou “de autor” no Japão”.’’

Apresentado o contexto de onde Império da Paixão está inserido e de onde parte, vamos continuar para sua análise.

I – Paixão

O presente filme se passa em uma aldeia japonesa por volta de 1895, onde Seki (Kazuko Yoshiyuki) decide assassinar seu marido Gisaburo (Takahiro Tamura) com a ajuda do jovem amante Toyoji (Tatsuya Fuji). Contudo, nem a culpa, a sociedade e mesmo o fantasma de Gisaburo deixarão o casal viver juntos ou mesmo em paz. Bem mais ameno e menos voltado ao erótico explícito que o filme anterior, O Império dos Sentidos, temos aqui uma obra que visa explorar vários aspectos daquele Japão ainda agrário e conservador, desde questões de âmbito mais universais e existências, até outras bem específicas aquela sociedade, como questões envolvendo matrimônios indesejados e o abismo de classes entre senhores agrários e camponeses.

Seki vive em uma casa relativamente modesta, cuidando diariamente de seus dois filhos e do marido Gisaburo, que trabalha com um riquixá. Ele, mesmo amando verdadeiramente sua mulher e família. É bem conservador, por exemplo, não quer que sua filha estude e sim que se torne uma dona de casa como sua mãe. Diariamente, Seki é visitado pelo jovem Toyoji que tenta insistentemente conquistá-la, até que ela cede às suas paixões, não apenas sexuais, mas amorosas, afinal, ela claramente era infeliz em seus papéis de mãe e esposa. Para poder desfrutar a vida sem impedimentos com sua amada, Toyoji propõe matar Gisaburo, o que Seki, muito relutantemente, aceita, apesar de ser perseguida pela culpa do crime, como também pelo fato de preferir sua vida sem o marido ao seu lado.

Um aspecto relevante a destacarmos nesse início de narrativa é o design de produção que logra uma ótima reconstituição de época, trazendo bastante fidelidade na representação daquele Japão à beira do século XX, com um especial destaque para o uso do branco gélido do inverno para representar o descontentamento de Seki com sua vida, e para o vibrante tom marrom e laranja do outono, que apesar de esparramar folhas secas e mortas também nos faz entender que tanto Toyoji e Seki tiveram dias felizes após o assassinato, mas que agora o tempo prenuncia a chegada de um novo e temeroso inverno, além de novos e inescapáveis sofrimentos.

Um dos pontos mais fortes da filmografia de Ōshima é a maneira como ele trabalha os vícios do indivíduo humano, não somente como um atributo do lado mais atávico e animalesco como também uma reação do indivíduo ao desespero da própria condição humana, onde qualquer possibilidade de transcender ou superar o ciclo de dor e sofrimento estão anuladas e restará apenas a satisfação pelo prazer, seja físico ou emocional. Nesse aspecto, o Império da Paixão busca nas raízes dos sofrimentos de Saki e de sua negação da vida que leva uma forma de entender as ações passionais que ela cometeu ao longo da trama. 

II – O Fantasma da Culpa

Após um corte de três anos para o futuro, Gissaburo, que foi jogado em um poço distante na floresta perto da vila, retorna à trama como um fantasma, ou melhor dizendo, um Yūrei, buscando ser retirado do poço onde reside em agonia. Contudo, serão as ações suspeitas de Toyoji que irão iniciar os primeiros burburinhos de que algo possa ter ocorrido com o marido de Seki. Ele passa a catar folhas secas de outono e sempre derramá-las no poço em que ele e sua amada jogaram o corpo da vítima, de modo a atrair desconfiança dos outros moradores da vila já que, além de Gissaburo não ter voltado para as comemorações de ano novo, o Yūrei passa a assombrar de forma decisiva sua esposa e até mesmo outros moradores, narrativamente funcionando tanto como uma metáfora para a culpa dela quanto como um elemento lúdico de horror.

A direção em si se mostra hábil, usando o recurso de slow motion em duas cenas impactantes – uma em que vemos ela e Toyoji, do ponto de vista do poço, se desfazendo do cadáver e outra em que o Yūrei dirige seu riquixá junto de Seki apavorada, também em slow motion. Outro aspecto a ser notado é a forma como o diretor zomba das autoridades japonesas e critica sua forma de atuação quando nos apresenta o inspetor Hotta (Takuzo Kawatani) que por seus gestos espalhafatosos funciona como alívio cômico, ao menos até o final da trama. Vale destacar, também, a ótima atuação dos já citados Kazuko Yoshiyuki e Tatsuya Fuji, com destaque aqui para a cena em que Saki, cansada de todos os infortúnios que carrega e desacreditada em sua vida põe fogo em sua casa e decidi não sair dela, de modo a poder finalmente se livrar de uma vida de trabalho contínuo e árduo que nunca tem fim. Nesse ponto notamos como as representações dos senhores de terra e dos camponeses que trabalham para eles são bem realizadas, perceptível não apenas nos modos de falar, mas também nas roupas e adereços, ou seja, apesar do recorte existencial e moral a política está sempre presente nas relações sociais.

III – Desespero

‘’O estádio estético deixa a pessoa em um beco sem saída, condena-a ao desespero […] O esteta não pode conhecer a esperança e perde o sentido da vida. Por isso se vê condenado ao tédio, esta “eternidade sem gozo” […]. Assim, para consolar-se desses horizontes ameaçadores, “o homem carnal” é incitado a dizer: “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” (cf. I Cor 15,32) (FARAGO, 2011, p.122-123).

Ao final da trama, Toyoji abandona sua postura irônica e hedonista e se desespera ao ver que pode perder seu grande amor para o fogo. Em uma atuação primorosa, Tatsuya Fuji passa toda a sensação de dor e culpa de sua personagem, afinal, ele a levou a trair e a matar seu marido e mesmo assim foi incapaz de um ato mais próximo e altruísta de amor. Apesar de não temer a morte, Toyoji teme a solidão. Apesar de optar pela via carnal de vida, o desespero do abandono se torna maior que todo seu cinismo e resignação. Apesar de conseguir entrar na casa, ele decide ficar junto de sua amada para morrer juntos, mas são resgatados pelo corpo de policiais. Posteriormente, de maneira bárbara, ambos são amarrados nos galhos de uma árvore e são torturados com bambu para confessarem seus crimes, o que fazem juntos. Tendo passado o inverno rigoroso, o corpo de Gisaburo é retirado do poço na presença de ambos os assassinos, que são levados para julgamento e posteriormente enforcados.

Um ponto que me chamou muito a atenção após o fim da obra foi que os protagonistas estavam bem distantes do que a religião indígena do Japão, o xintoísmo, traz consigo: estão desconectados da natureza, imersos em sua paixão; estão afastados do culto aos ancestrais ao negarem ao morto um enterro digno e estão longe dos padrões de purificação, presos eternamente à liberdade, buscando o amor mesmo incapazes de subirem novamente do poço de suas vidas.

O Império da Paixão (Ai No Borei / 愛の亡霊) – Japão e França, 1978
Direção: Nagisa Ōshima
Roteiro: Nagisa Ōshima
Elenco: Tatsuya Fuji, Kazuko Yoshiyuki, Takahiro Tamura, Takuzo Kawatani, Taiji Tonoyama
Duração: 101 minutos 

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