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Crítica | O Iluminado, de Stephen King

por Kevin Rick
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O Iluminado

Assim como qualquer escritor, especialmente os mais prolíficos, Stephen King carrega consigo características narrativas e de prosa que delineiam várias de suas obras. Algo que já citei em outras críticas de livros do autor é a construção que ele faz do fantástico como meio de expor a iniquidade humana. Dessa forma, o gênero do horror casa perfeitamente com seu estilo, indo de encontro ao terrível pano de fundo do mundo real, no qual King se tornou mestre em equilibrar o paralelo da malevolência social com suas fantasias de terror. E é intrigante notar como seus dois primeiros romances, Carrie, a Estranha e ‘Salem, trabalham essa ideia de modo divergente, com Carrie sendo um estudo de personagem mais intimista, enquanto o livro sobre a cidadezinha de Salem’s Lot tem uma abordagem focada na própria atmosfera do horror na ambientação da trama em questão. E então nós temos O Iluminado, que termina sendo uma amálgama desses elementos, além de aprimorá-los e continuar a evolução artística de King em um dos melhores – quiçá o melhor – livros da sua carreira.

Para aqueles não familiares com a premissa da obra literária, a narrativa acompanha a família Torrance, composta pelo patriarca Jack Torrance, sua esposa Wendy Torrance e o filho do casal, Danny Torrance, que, no ponto inicial da trama, estão sofrendo um perrengue financeiro proveniente do desemprego de Jack, que foi demitido da posição de professor após agredir um estudante. Al, um amigo de bebedeiras de Jack, decide ajudá-lo oferecendo um emprego temporário de zelador no Hotel Overlook, do qual é sócio, e precisa de alguém para cuidar do estabelecimento durante o inverno, período em que, por causa da localização montanhosa da hospedaria, o hotel fica fechado e completamente vazio – pelo menos de gente viva. Jack decide se rebaixar, uma posição imposta que ele odeia ao longo da obra, mas que, por causa da situação precária, não pode recusar. Ele leva a família consigo para o isolamento do hotel possuidor de forças sobrenaturais no seu controle, enquanto seu filho, um “iluminado”, tem poderes para ver o passado horrível do Overlook.

Em linhas gerais, o modo que King constrói a narrativa com camadas e camadas de diferentes artifícios do terror, aos poucos se sobrepondo e juntando-se, foi o que mais apreciei do controle estrutural do autor. Ele toma seu tempo – em torno de 100 páginas – para elaborar o drama familiar dos Torrance, expondo o alcoolismo e caráter violento de Jack, a inocência e receios de Wendy, e os poderes de Danny. Essa parte pode parecer enrolada ou arrastada, mas acho interessantíssimo a demonstração extremamente real de um âmbito familiar ao mesmo tempo amoroso e amedrontado pela imprevisibilidade de Jack, situação esta que se torna o núcleo do pavor de Danny e Wendy no hotel, além das pequenas migalhas de suspense com os sonhos e visões do garoto e seu “amigo imaginário”, Tony, lentamente prendendo o leitor.

E quando finalmente chegamos no Overlook, o prazo dado para conhecer o trio enriquece o mergulho psicológico aterrorizante do estabelecimento, pois dá um pano de fundo dramático para as situações dentro do hotel, algo que normalmente sinto falta em obras de horror, independente da mídia, que acabam detraindo a caracterização para correr com o medo, além de prover o ótimo desenvolvimento de um dos personagens mais simpáticos da bibliografia de King: Danny. A forma como o escritor preenche o arco da perda de inocência do garoto é completamente sensacional, trabalhando esse lado fantástico como uma sina, e um quê de jornada do herói, tragicamente oposta ao pai. Situação pavorosa levada com mais fervor para Wendy, sempre num estado defensivo com a ambiguidade do marido. É um terror tão minucioso que King emprega com Jack, com mudanças de comportamento, vícios da época de alcoólatra como mastigar remédios e passar a mão na boca, reações violentas e alucinações, que vão consumindo a sanidade do patriarca.

Aliás, a perda da estabilidade mental de Jack proporcionada pelo Overlook configura uma das melhores obras sobre uma casa mal-assombrada que já vi, retornando àquela ideia do ambiente como personagem visto em ‘Salem, só que, diferente da cidadezinha de Salem’s Lot, o hotel é transformado em um antagonista completo. King trabalha Overlook de modo claustrofóbico e prisional, e como uma entidade em busca de independência, vendo o dom de Danny como essa saída, atrativamente manuseando o orgulho e busca por reconhecimento de Jack para assassinar sua família. E como King ambienta a caracterização do hotel nesse caráter psicológico, metafísico e espiritual, transforma a dinâmica familiar já assombrosa para ares homicidas. Particularmente, adoro as sequências do quarto 217 e do salão de festas, e a atenção detalhista do escritor para elaboração das cenas tenebrosas, apresentando o hotel como um amplificador do lado maléfico da natureza humana.

Algo que me chama atenção nessas sequências aterrorizantes, é o fato do escritor não tentar explicar a iluminação de Danny. Em Carrie, a Estranha, o autor utiliza um embasamento sci-fi que não funciona no ritmo da narrativa, mas, aqui, a ideia é do fantástico simplesmente existir sem tentativas mirabolantes de dar um significado. Isso engradece bastante a trama, focando mais no ideal do purismo de Danny em meio a corrupção do Overlook, e do próprio Jack. Situações familiares que sim ganham muito espaço na composição dos eventos que levam ao frustrado Jack sentir ciúmes do hotel e inveja de Danny.

O clímax estendido é digno de nota, paralelamente navegando nos finais estágios de perda de identidade de Jack, abrindo essa discussão se devemos ou não simpatizar com a complexidade do personagem, o terror de Wendy e Danny, e a corrida contra o tempo de Hallorann – outro iluminado, do início da trama – para salvar a família do hotel, além da posição defensiva do Overlook de “proteger” sua presa. O Iluminado é uma obra-prima de horror catártico, retornando àquele argumento que citei de como King vai construindo a narrativa com várias camadas, preenchendo a trama sobre vício, maturidade antecipada, violência doméstica e falhas humanas, com o toque temporal e simbólico de Overlook como representação da maldade social. Sem sombra de dúvidas, O Iluminado é um dos melhores romances de King e obras de horror de todos os tempos.

O Iluminado (The Shining) – Estados Unidos, 1977
Autor: Stephen King
Editora original: Doubleday
Data original de publicação: 28 de janeiro de 1977
Editora no Brasil: Suma
Data de publicação no Brasil: 22 de agosto de 2017
Tradução: Betty Ramos de Albuquerque
Páginas: 520

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