A memória é um ingrediente especial da vida. Um importante ponto de referências pessoais, parte da formação do caráter e fato-gerador da tão falada experiência que vem com a velhice. Mas a memória também é um território traiçoeiro. Muitas vezes dominada por um sentimento (qualquer que seja, basta ser forte), ela engana, planta pistas falsas, nos faz vez ou achar que é lembrança algo que não passa de fantasia. Assim constata Rodolphe, personagem de Paul Vecchiali, que também escreve e dirige este O Ignorante (2016), a jornada de um homem velho em busca do seu primeiro amor do passado.
Narrado de maneira linear, mas com temporalidades diversas dentro de cada bloco, a obra é um diário teatral da velhice de Rodolphe, e a direção ou mesmo o conceito de Vecchiali aqui se assemelham bastante aos dois últimos filmes de Alain Resnais, Vocês Ainda Não Viram Nada! (2012) e Amar, Beber e Cantar (2014). Diferente do colega, porém, Vecchiali dá mais atenção ao drama isolado, usando da teatralização apenas para guiar as atuações — principalmente a de Pascal Cervo, que interpreta o filho –, o que torna o longa mais confuso do que deveria, pois o relacionamento complicado entre pai e filho, com Vecchiali e Cervo bons atores como são, já seria o bastante para dar força total à fita.
Na esteira de “diários de uma vida” e do lema “eu visito a memória e a memória me visita“, vemos que o velho protagonista recebe muitas mulheres com quem ele esteve ao longo da vida. O tom dos diálogos nesses momentos variam, dependendo da pessoa, mas todas as atrizes que preenchem esse papel de “ex” o faz muito bem, mesmo que sua participação seja um pouco boba, ou até desnecessária, uma vez que pouca coisa apresenta.
O roteiro vai pulando de pai para filho, que se digladiam e se apoiam, sendo mostrados de maneria diferente pela câmera e pelos figurinos, que são a grande marca da dupla principal. Enquanto o jovem Laurent é mostrado como alguém desleixado, que veste apenas um tipo de roupa e possui pouca ou nenhuma vaidade, seu pai é representado como um dândi anacrônico, com suas roupas de cores fortes, echarpes e sapatos que lhe dão ainda mais poder. Como a interpretação de Paul Vecchiali é poderosa, o espectador se apaixona pelo homem de cabelos brancos que, mesmo sendo explosivo no trato, tem um bom coração e sempre procura ouvir e cuidar dos seus.
O filme acaba sendo mais longo do que o necessário e se beneficiaria com o corte de metade das reflexões dos dois protagonistas. A inserção da personagem de Catherine Deneuve apareceria, então, mais cedo, e isso seria ótimo, pois o filme se arrasta até que Rodolphe a encontre, mas por toda a preparação e todo o conceito de memória instigado pelo próprio roteiro, o resultado desse encontro é aquém do esperado. Também é necessário dizer que as voltas de Laurent com seu namorado e o homem que vai morar na casa do jovem, como um “amigo curando a dor da perda” — uma forma bastante canhestra de apresentar uma amizade íntima entre dois homens, à parte o desejo sexual, como aquela que vimos bem melhor exposta em A Montanha Matterhorn (Diederik Ebbinge, 2013) — não são boas adições à fita, exceto pelas atuações, novamente marcantes.
O Ignorante é quase uma prova de que certas coisas são ensinadas, imitadas e rememoradas pelas novas gerações, copiando ou tomando seus pais como referência para seguir um caminho oposto. Comportamentos que são a marca (canalha) de algumas pessoas, mas que formaram uma rede de indivíduos ao redor dele por toda a vida. O filme tem um trabalho dramatúrgico excelente, uma ótima proposta teatral, embora não totalmente executada, e boa linha tragicômica, mas perde tempo demais com trivialidades e acrescenta coisas que pouco dizem sobre os personagens, apenas enchem o filme de novos monólogos e tiradas que, sozinhas, funcionam bem, mas no todo, são resultado de pura falta de freio e objetividade do diretor.
O Ignorante (Le cancre) — França, 2016
Direção: Paul Vecchiali
Roteiro: Paul Vecchiali
Elenco: Paul Vecchiali, Pascal Cervo, Catherine Deneuve, Mathieu Amalric, Annie Cordy, Françoise Lebrun, Françoise Arnoul, Edith Scob, Marianne Basler
Duração: 110 min.