Publicado em 1937, o álbum O Ídolo Roubado (ou A Orelha Quebrada) acompanha a caçada de Tintim a um grupo de bandidos que sumiram com uma peça indígena de um museu etnográfico. O tal ídolo é logo identificado como uma peça sem valor comercial em si, restando apenas a possibilidade de um colecionador criminoso ter tido interesse no objeto, e então, solicitado o serviço de criminosos especializados em roubos desse porte, para adquirir a relíquia. Mas o que Tintim não esperava de toda essa história é que por trás do roubo havia algo de interesse muito maior do que uma estátua indígena.
Hergé traz mais uma vez o ambiente das aventuras do repórter topetudo para uma realidade histórica de seu tempo, assim como fizera em Tintim no País dos Sovietes ou no engajado O Lótus Azul. Desta vez, Tintim vem novamente para a América, mas para um lugar bem distante da máfia de Chicago que ele prendera anos antes. O autor cita a América do Sul como local de desembarque do repórter, mas os locais da aventura são repúblicas fictícias: San Theodoros e Nuevo Rico.
Vale observar que, embora o corpo geral da história não seja dos melhores já escritos por Hergé, a atmosfera de lutas sociais latino-americanas é muitíssimo bem representada na história, assim como a maleabilidade política dos Exércitos, as revoluções de araque e a discrepância entre a população local (geralmente miserável) e os acordos geopolíticos que tornam ricos os militares empossados e permitem a existência das haciendas e toda a organização social em torno delas. Embora os desenhos indiquem um estereótipo mexicano para a região (!), o texto nos permite estabelecer um território entre o Paraguai e a Guiana Francesa como possíveis locais verdadeiros de San Theodoros e Nuevo Rico — perceba que é uma grande região de possibilidades (os países citados nem fazem fronteira!), todavia, os eventos e as indicações geográficas e étnicas do álbum nos dão essa abertura de interpretação.
Além da guerra civil em San Theodoros, que opõe o General Alcazar ao General Tapioca, Tintim se vê no meio de um outro conflito, a disputa por todo o deserto de Gran Chapo, uma região que, segundo o representante da General American Oil, Sr. R.W. Chicklet, é rica em petróleo. Essa passagem do livro é interessante, porque Tintim se torna um General nomeado por Alcazar, mas é visivelmente antibelicista, o que o faz rejeitar a proposta de início de uma guerra com Nuevo Rico apenas para lucrar com a extração de petróleo. Essa política de acertos econômicos e investimentos em guerras ou ditaduras na América Latina é trabalhada fielmente por Hergé. Sua visão não se desvia muito da realidade, e o mesmo pode ser aplicado, inclusive, das nações de seu continente, quando desejam a partilha de algum bem natural em um país subdesenvolvido.
No caso desse conflito que traz o petróleo como pivô, temos um equivalente na realidade. Trata-se da Guerra do Chaco (1932 – 1935), ocorrida entre a Bolívia e o Paraguai, justamente pela anexação de um território, o Chaco Boreal/Gran Chaco, uma região supostamente rica em petróleo. A guerra terminou com a derrota dos bolivianos, que também tiveram parte do seu território anexado pelo Paraguai. A má notícia para os senhores que financiaram a guerra foi que ninguém encontrou os tais grandiosos poços. Essa inutilidade do conflito armado também é abordada aqui em O Ídolo Roubado, mas no desenvolvimento da história deixa de ser a coisa mais importante, para que tramas secundárias se desenvolvam.
A caça ao ídolo volta na reta final, com Tintim pedindo ajuda de um nativo para chegar à tribo dos Arumbayas, que acredita-se ter sido inspirada no povo Wayana, da Guiana Francesa. O desfecho é interessante e tem um bom ritmo de acontecimentos, mantendo o humor e a constante ação – que aliás, apresenta uma espantosa renovação a cada álbum. O único ponto desse campo que não gosto em O Ídolo Roubado é como Tintim escapa de um de seus raptores, quando interrogado em um barraco, numa noite de tempestade. O Deus ex-machina de Hergé sequer recebe um gancho satisfatório para a sequência seguinte, ou mesmo a tentativa de minimizar a “dose de impossível” para o que ocorreu.
De resto, temos em O Ídolo Roubado um interessante relato de brigas internas, revoluções militares, populares e uma interessante e não pouco verdadeira visão para as Repúblicas das Bananas na América Latina. A despeito dos estereótipos, o artista conseguiu retratar muito bem os caminhos trilhados pelos governos do subcontinente no início do século vinte. Um trabalho de fato bem realizado.
L’oreille cassée (Bélgica, 1935 – 1937)
Publicação original: Le Petit Vingtième, 5 de dezembro de 1935 a 25 de fevereiro de 1937
Publicação encadernada original: Casterman
No Brasil: Companhia das Letras, novembro de 2005
Roteiro: Hergé
Arte: Hergé
62 páginas