Até onde vai o limite da autoria no Cinema? Como abordar este aspecto metodológico diante de uma obra co-dirigida, como é o caso do recente Bacurau, realizado por Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles? Como afirmar, em um texto, que tais escolhas estilísticas e narrativas remetem à filmografia de um diretor, se não temos certeza de quem saiu a decisão ali — aliás, o mesmo raciocínio valeria para todo o autorismo, com a lógica de que diversas escolhas atribuídas ao diretor na verdade são ideias de chefes dos departamentos técnicos. Eis que no meio deste debate surge uma das obras do cinema moderno mais interessantes sobre Autor: O Homem Urso. A pergunta “quem é o diretor?”, neste caso, é intrínseca à feitura deste documentário, que é movido por uma disputa de forças dialética — ainda que o único nome creditado como “diretor” seja de Herzog, o que diz muito também sobre este filme.
De um lado, há o americano Timothy Treadwell, um apaixonado pela natureza (e odioso da sociedade), que viveu os últimos 13 anos se aventurando em áreas de proteção ambiental, no Alasca, interagindo com ursos. Ou melhor, tentando ser um urso. O protagonista do filme gravou sua vida nestes últimos anos a partir de vídeo-diários até o momento de sua morte, nas mãos de um urso, em circunstâncias misteriosas, junto com sua namorada. No extremo oposto, há o experiente diretor alemão Werner Herzog que, fascinado e incrédulo com tal história, pegou tudo já feito em vídeo por Treadwell, de maneira bruta, e organizou em uma narrativa, que mescla suas aventuras a partir de imagens de arquivo e depoimentos de pessoas próximas à ele colhidos posteriormente pelo diretor. Além disso, Herzog adiciona comentários próprios e juízos de valor por voice over.
O primeiro ponto que surge em O Homem Urso, e essencial a todos os outros, é a visão oposta que ambos possuem da natureza e dos ursos. Enquanto Treadwell é um verdadeiro apaixonado por ela e confiaria sua vida àqueles animais, abdicando até de um senso de autopreservação, Herzog, por suas próprias palavras, ao olhar o focinho e olhos daqueles animais, só consegue enxergar o vazio de criaturas que comeriam qualquer coisa que viesse pela frente para sobreviver. Em um, existe o encantamento, no outro, a desconfiança.
Como consequência lógica desta afirmação, a própria escolha dos trechos das entrevistas e voice over que Herzog utiliza vão em uma direção de questionar as atitudes daquele homem, inclusive investigando seu passado para procurar justificativas de tudo isso. Ou seja, Herzog está tentando, logicamente, compreender o que talvez seja incompreensível, gestos de amor e pureza. O próprio ato de criar uma narrativa, que tem seu “clímax” na morte de Treadwell, significa uma imposição de uma lógica causal de ação e consequência, como se aquele homem tivesse procurado por seu destino a partir de suas atitudes. Aliás, a escolha do diretor em fazer de Treadwell o protagonista já é algo que carrega uma tensão inerente, pois vai de contrário a tudo que ele provavelmente queria.
Isso leva a um segundo ponto fundamental: o tratamento da imagem em O Homem Urso, que se revela como um véu duplo e ganha contornos praticamente paradoxais. Afinal, trata-se de uma só imagem, mas com duas interpretações opostas. Primeiramente, elas são gravadas por Treadwell, um não-cineasta, que usa sua câmera como uma espécie de diário e que parece mais preocupado em registrar o acaso dos encontros proporcionados pela natureza, capturando momentos únicos a partir de uma visão pura que alterna tanto uma primeira quanto terceira pessoa. Portanto, existe o que poderia se chamar de uma pureza da imagem, que remete ao realismo de Bazin e Kracauer, representando uma tendência do homem em seguir a natureza e esperar o fluxo da vida, usando a câmera como mero veículo para capturá-la, a partir de intenções puras.
De um lado oposto, está Herzog, que nada de amador possui. Contrariamente a tudo dito no parágrafo anterior, não há nenhuma pureza no que o diretor faz. Pelo contrário, já que ele macula a imagem pura. Se nossos olhos estão enxergando um plano de um urso próximo da câmera, que fora capturado com inocência por Treadwell, o que Herzog faz é impor um senso de perigo diante daquele plano. E não é a partir de mágica que o diretor faz isso, mas inserindo precocemente na narrativa a informação da morte daquele homem por um urso, além dos voice-overs e entrevistas tendenciosas para o seu lado cético. Tal escolha gera no espectador uma tensão inerente quando houver um próximo encontro do protagonista com um urso. Então, aqui está a dupla camada imagética, que é tanto inocente quanto sugestiva.
De tudo isso, chega-se a uma indagação que é a parte mais incrível de O Homem Urso. Se Herzog impôs uma narrativa àqueles registros inocentes e criou um protagonista, teoricamente também existe a necessidade de haver um antagonista — que no cinema não necessariamente é um ser humano, podendo ser outras coisas abstratas, como uma dificuldade financeira. Na visão de Herzog, trata-se dos ursos e da natureza. Porém, por tudo que foi dito na crítica, o vilão pode ser o próprio Herzog. A palavra (interpretação) final caberá ao espectador, que se viu em conflito ao longo de todo o filme entre a visão de Treadwell e do diretor. Seria o protagonista um homem puro conectado com os animais, sendo Herzog incapaz de entender tal conexão, ou seria ele um completo desequilibrado que não entende o perigo daquelas “criaturas”? No fim, em um ato lindo por parte de Herzog, que se aproveita de sua posição de criador daquela narrativa e reconhece momentaneamente a visão de Treadwell, o longa não é encerrado com a morte, mas, pelo contrário, com o homem andando para longe da câmera junto com dois ursos, quase em direção ao além.
O Homem Urso (Grizzly Man) — EUA, 2005
Direção: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog
Elenco: Timothy Treadwell, Kathleen Parker, Warren Queeney, Willy Fulton, Sam Egli, Werner Herzog, David Letterman, Jewel Palovak
Duração: 103 mins.