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Crítica | O Homem Que Vendeu Sua Pele

por Iann Jeliel
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O Homem Que Vendeu Sua Pele

Não é tão evidente, mas é possível enxergar O Homem Que Vendeu Sua Pele, representante da Tunísia no Oscar de Melhor Filme Internacional em 2021, como uma sátira. Séria, dramática, mas ainda satírica, com seu comentário aparecendo muito implícito em cada movimento da história, que se levada no literal, talvez pareça inverossímil dentro do contexto verdadeiro de marginalização dos refugiados da guerra civil na Síria. No entanto, quando o drama de Sam Ali (Yahya Mahayni) cruza o dilema do limite artístico apresentado pela premissa, a obra evidencia seu lado mais ácido à cultura da imagem por inclusão, mais pela imagem do que necessariamente pela inclusão, além de trazer à tona a perspectiva individual do corpo entre esses mundos em que ele precisa se comercializar.

Há três linhas de frente no debate: 1. Sam, vendendo sua pele para fazer tatuagem artística, vira escravo da corporação, mesmo aceitando a condição por vontade própria? 2. Ao ser esse “escravo”, Sam está deslegitimando o povo que representa, mesmo que a tatuagem e a corporação estejam defendendo a causa? 3. Mesmo que a corporação esteja fazendo isso por dinheiro e imagem à frente do movimento, não deixa de ser um modo legítimo de popularizá-lo? Uma vez que é importante que isso esteja, literalmente, sendo exibido para que todos possam compreender? Por aí já dá para pescar que cada escolha de virada narrativa no filme não é arbitrária. Há sempre um direcionamento para alguma das respostas duais da trinca mencionada de questionamentos, em que pelo menos uma delas deixará brecha para expor uma hipocrisia levantada pela outra. Enquanto isso, o texto brinca com conceitos de palavras-chave ao trazê-los para um sentido literal, o que parece absurdo.

Nesse momento entra o formato de sátira, quando literalmente temos um corpo sendo leiloado como mercadoria, sendo que dentro do sistema capitalista, todos os corpos já são constantemente sobrepostos em leilão por sobrevivência. Sam, sim, só aceitou tal trabalho de tatuar suas costas para melhorar sua condição de vida, como qualquer outro, que se não conseguir um modo de ganhar alguma renda, qualquer que seja, iria acabar como ele, sendo ou não um refugiado de guerra. O detalhe do rótulo de “refugiado” é um asterisco popular que o fez saltar para algo diretamente mais rentável, porque o assunto está em alta, mas o personagem não exatamente liga para o que teoricamente ele precisa representar enquanto imagem. E aí, podemos levar para vários lados, como o conceito até do que é idealizado como arte, o que qualitativamente é escalonado por uma questão realística, quanto mais próximo da verdade, “melhor”. Ora, o que tem de mais realístico do que literalmente a pessoa marcada com o símbolo do seu povo como exibição. Não à toa, o debate da elitização da arte também está presente, essa luxúria do realismo é literalmente o que faz a arte ser elitista, ou um dos principais fatores.

Há também o discurso integrado na sua responsabilidade de denúncia, uma arte medida por importância social, em que o levantamento de bandeira se torna o artefato de elitização do produto artístico. Curioso que Sam queira ganhar às custas disso, como a própria corporação do artista renomado que deseja contratá-lo (Koen De Bouw), como ele pode ainda assim representar sua cultura? Cultura que o negligenciou, então por que ele deve se importar com ela? Nem por isso Sam exatamente está do lado de quem também quer usá-lo para levantar sua bandeira por imagem, uma vez que ele próprio a usa para seus interesses pessoais. Esse individualismo de Sam é muito bem desenvolvido pelo romance elaborado como fonte de conexão humana ao personagem. É só perceber que a injustiça que o expulsou do país não o leva a nenhuma revolta de injúria política e nem mesmo pessoal por parte da família. Sua única chateação foi ter sido impedido de casar-se com a pessoa que amava. E o filme engana direitinho ao assumir até um certo tom classista de amor impossível, para posicionar a aparência platônica da sua paixão em uma hombridade honrosa, justificativa de suas decisões. Sam não é nenhum santinho (isso fica claro em qualquer cena que conta uma mentira), ele está do lado de quem vai ajudá-lo melhor a conseguir seu objetivo, nem que precise – como acontece em determinado momento do filme – manipular a própria amada (Dea Liane), culturalmente posicionada de forma submissa para conseguir uma chance futura de “tê-la”.

TRECHO COM SPOILERS

Compramos toda essa jornada por ser estruturalmente contada de modo bem acessível, mas perto do encaminhamento final, isso começa a ser desvirtuado, o que provavelmente levará a algum estranhamento e desgosto, contudo, todo o terceiro ato é uma confirmação de que essas linhas ambíguas se fecham cada uma em seu interesse. Sam consegue a sua amada, vai morar livre em seu país com a família e deixa de ser perseguido por uma morte forjada, que consequentemente o faz virar símbolo de denúncia às problemáticas de seu país que tanto o mundo cobrava dele. A corporação do artista que usou seu corpo conseguiu a imagem que desejava, vendeu-a em arte antes que pudesse perder a credibilidade no assunto e ainda a recuperou depois da morte forjada por explosão, para continuar sendo exibida nacionalmente como artefato histórico em que baseou sua desculpa, para início de conversa. Basicamente, todos os pontos são cumpridos. O sistema ganha, porque esse amor de Sam, a representatividade de sua origem, a intenção da empresa com essa representatividade e a arte como denúncia da realidade não passam de meros utensílios ao seu próprio interesse pessoal também.

O Homem Que Vendeu Sua Pele (The Man Who Sold His Skin | Tunísia, 2020)
Direção: Kaouther Ben Hania
Roteiro: Kaouther Ben Hania
Elenco: Yahya Mahayni, Dea Liane, Koen De Bouw, Monica Bellucci, Saad Lostan, Darina Al Joundi, Jan Dahdoh, Christian Vadim, Marc de Panda, Najoua Zouhair, Husam Chadat
Duração: 104 minutos

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