A facilidade, e a felicidade, com que Harold Lloyd se diverte atuando, e atua como se brincasse em cena, é impressionante. Com direção de Fred C. Newmeyer e codireção do roteirista, Sam Taylor, o filme vai da comédia ao drama, do humor ao romance com muita inteligência e capricho. A escolha do argumentista em tratar da comédia no percurso de uma odisseia é extremamente inteligente e relembra os primórdios da comédia ainda enquanto gênero literário, como em Cândido, ou O Otimismo, de Voltaire. A propósito, os enredos são bem parecidos, e não duvidaria de que Sam Taylor tenha lido o Cândido e nele tenha se inspirado para construir as viagens e os desarranjos de Harold, o protagonista – também apelidado de O Garoto.
O filme conta, ainda, com a participação de Mildred Davis, que acabou se casando com Lloyd logo após as filmagens. Ela está ótima no filme e sempre aparece na hora exata, oferecendo uma dose de inocência no meio de tanta malícia, mentiras e trapaças, contrapondo o ritmo frenético e malandro de seu namorado. As cenas do filme, do começo ao fim, se fazem memoráveis pelos inteligentes insights, pela atuação de Lloyd e pela forma como a direção opta por trabalhar a comédia, utilizando de todos os artifícios possíveis para produzir o humor, que funciona brilhantemente. A movimentação de câmera também contribui para a produção do riso e basta lembrar da cena de entrada para confirmar essa hipótese: ao início, vemos, em um plano fechado, Lloyd atrás das grades.
Do outro lado das grades, está sua namorada e família o consolando por um motivo que ainda não sabemos. Repentinamente, o plano se abre e vemos que, na verdade, Lloyd não estava preso, mas, sim, do outro lado da plataforma de trem, que é dividida por grades do chão ao teto. Neste momento, a direção faz uma transição surpreendente, indo do drama à comédia. Toda a primeira cena é hilária e o filme avança com doses refinadas de humor mudo. A atuação de Lloyd, de como-quem-não-quer-nada, ajuda o filme a ter um impulso ainda maior.
Essa ideia do homem sair do campo para tentar a vida na cidade grande, e chegando lá atrapalha-se todo em confusão, é típica dessa fase pré-era de ouro do cinema norte-americano. Na comédia em questão, Harold é um mentiroso de mão cheia, enrolado, que se perde na própria mentira. No momento em que toda essa máscara ameaça cair – já que Mildreds sai do campo para ir visitá-lo de surpresa, assim, com o risco de acabar descobrindo tudo -, Lloyd tenta compensar a mentira com outra mentira, criando uma bola de neve. Billy Liar (1965), de John Schlesinger, repete esse mesmo roteiro e faz uma obra-prima da comédia inglesa quarenta anos depois.
Um aspecto interessante do filme é a sua estrutura: ele tem diversos pré-clímax. A todo momento, ele, Harold Lloyd, é “quase” desmascarado. É sempre uma situação limítrofe, em que parece que seu plano vai dar errado. Mas ele sempre se safa, dando combustível para a narrativa. O fato é que todos esses pré-clímax contribuem para o clímax, que é a escalada do edifício. Na cena final, em que Lloyd, depois de se enrolar tramando mais uma malandragem, acaba tendo de escalar um arranha-céu, a trilha faz um papel integrador, e é possível sentir a tensão e o suspense que o momento exige. A cena em questão, do protagonista pendurado em um relógio no ponto mais alto do edifício, é um clássico e foi rememorada em A Invenção de Hugo Cabret (2011). O ato final impressiona pelas belíssimas imagens suspensas, evidenciando a altura de onde Lloyd está pendurado.
A tradução do título tenta captar alguma essência, dada a última cena em que Lloyd parece estar se agarrando, voando pelo edifício acima. Mas não achei interessante e não acho que condiz com o filme. No inglês é “Safety Last!”, uma brincadeira com a expressão “Safety First”. O longa brinca com a ideia de “Segurança em primeiro lugar”, levando-o para “Segurança em último lugar”, dado o perigo que o personagem correu ao escalar o edifício. A tradução brasileira não vinga.
O longa é rápido e diverte, sobretudo, pela narrativa em estilo corrido, veloz, típico da comédia. Diverte em todos os momentos pelas sacadas inteligentes, pelas piadas visuais e pelo ótimo entrosamento entre Lloyd e a direção do filme, que encerra um enredo completo, fechado, em 70 minutos de rodagem.
O Homem Mosca (Safety Last! EUA, 1923)
Direção: Fred C. Newmeyer, Sam Taylor
Roteiro: Hal Roach, Sam Taylor, Tim Whelan
Elenco: Mickey Daniels, Earl Mohan, Fred C. Newmeyer, Harold Lloyd, Mildred Davis, Noah Young, Sam Lufkin
Duração: 70 min.