Adaptação não de uma obra em específico, mas de um compilado de ideias oswaldianas presentes em Pau-Brasil, Sob As Ordens de Mamãe e Serafim Ponte Grande, o filme de Joaquim Pedro de Andrade (1981), o derradeiro longa-metragem de sua carreira, parece ser o encerramento, no Cinema Novo, de um longo ciclo de discussões e reelaborações do legado modernista de 1922. O Homem do Pau-Brasil, conectado de maneira umbilical com a matriz modernista, reúne comicidade, paródia, postura crítica e estética moderna na fórmula geradora do filme e coloca-se numa posição de síntese, emblema e desenlace.
Incorporando procedimentos modernistas na forma da fita, como a fragmentação, acumulação episódica, paródia, ironia e colagem, Joaquim Pedro intenta relatar, por meio da caracterização de um herói volúvel, a vida e paixão de Oswald de Andrade. Talvez seja menos a vida do que o seu trajeto amoroso com Lalá, Dorotéia e Tarsila, introduzindo nessa epopeia oswaldiana um roteiro permeado por um forte olhar crítico ao “burguês-burguês”, “a digestão bem feita de São Paulo” e “ao homem-nádegas”, como vemos numa aparição oblíqua de Mário de Andrade (Paulo Hesse) durante apresentação da Ode ao Burguês naquela que supomos ser a Semana de Arte Moderna.
Joaquim Pedro tentou fazer uma fita popular, que pudesse trazer o povo ao cinema. Mas notamos o contrário da tentativa: um enredo hermético, preso numa erudição inconfundível, que traz dois atores de para interpretar Oswald de Andrade, numa cronologia que não mostra clareza, tampouco respostas, numa trama em que os personagens não são nomeados, que não dá a ver quem é Tarsila, Oswald, Mário, Cendrars, entre tantos outros. Sabemos quem é Oswald pelo óbvio, Tarsila porque a vemos pintando telas numa elegância típica que só ela tem, Mário porque recita sua canônica Ode ao Burguês… Acontece aqui, na película, uma revisão dos anos de aprendizado do poeta, de modo que, caso não exista um saber prévio ou alguma contextualização dos fatos que se passam na tela, dificilmente o espectador irá receber bem numa primeira assistida. O que ajuda a decifrar é a percepção de que o filme é decupado em três tempos essenciais, que correspondem às três paixões de Oswald: Lalá, Dorotéia e Tarsila. E daí os fatos vão se encaixando.
Numa cena caricata a respeito de quando um segurança, desconhecendo o poeta francês, barra Blaise Cendrars de entrar no ambiente, Branca Clara (Dina Sfat), no papel de Tarsila, pronuncia a icônica frase: “não é imigrante, é turista!”. Percebemos, então, que o filme se revela por meio de uma leitura crítica e bem-humorada de um momento de efervescência cultural brasileira, questionando, na forma de glosa, a postura burguesa e geneticamente elitista que caracteriza o desenvolvimento da estética revolucionária dos anos vinte, dividida entre popular e erudita – como aponta criticamente Mário de Andrade na conferência O Movimento Modernista (1942). O Homem do Pau-Brasil é canibal tal qual seu personagem-emblema e radical no caricaturismo de um grupo que, paradigmático, não deixa de ser lotado de contradições.
Notadamente, neste filme de fim do segundo-tempo da filmografia do realizador, ocorre uma espécie de “avacalhamento” da estética fílmica e um despojamento maior a respeito do rigor formal que marca a cinematografia do cineasta durante suas primeiras obras, como em O Padre e a Moça. A partir de Macunaíma (1969), é adotado um estilo “chanchadesco”, isto é, influenciado pela pornochanchada, o que introduz no cinema de Joaquim Pedro um tom carnavalesco, rabelaisiano e satírico. Ao propor essa guinada anticlassicizante, ocorre a realização de um filme que, como seu autobiografado, propõe uma frivolidade discursiva na caracterização de personagem, mas sem perder a conexão umbilical com a essência das ideias oswaldianas mais primevas para o primeiro modernismo.
A película reconstrói, num misto entre história e ficção, o imaginário do que foram os anos modernistas de Oswald e o próprio contexto de época, de modo a paulatinamente provocar uma desconstrução crítica do caráter revolucionário-reformista e sobretudo festivo que marca esse momento. Cercado por mulheres num ambiente que retoma aos primeiros anos de Brasil, o filme acena à estética antropofágica e à revolução matriarcal. Um filme de todo satírico e formalmente complexo na estrutura narrativa, pois moderno, O Homem do Pau-Brasil consagra-se pela agudeza com que dialoga – através da figura, vida e obra de Oswald de Andrade – com os preceitos e procedimentos técnicos do modernismo de 1922 e conclui síntese de uma tradição e encerramento das reelaborações cinemanovistas do movimento de renovação estético-cultural iniciado nos anos 20.
O Homem do Pau-Brasil (Brasil, 1981)
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, Alexandre Eulálio
Elenco: Ítala Nandi, Flávio Galvão, Regina Duarte, Cristina Aché, Paulo Hesse, Carlos Gregório, Juliana Carneiro da Cunha, Dina Sfat, Dora Pellegrino, Grande Otelo, Etty Fraser, Othon Bastos, Nelson Dantas, Wilson Grey, Sérgio Mamberti, Miriam Muniz, Marcos Plonka, David José, Antonio Pitanga, Paulo José, Riva Nimitz, Luís Linhares, Marcos Fayad, Xandó Batista, Antônio Pedro, Fábio Sabag, Renato Borghi, Patrício Bisso, Arduino Colasanti, Raymundo de Souza
Duração: 106 min.