Se em Superman – O Retorno a palavra de ordem era “homenagem”, em O Homem de Aço esta é “mudança”, algo evidenciado até mesmo pela escolha do título, que se esquiva de usar o nome Superman. Insatisfeita com o resultado da bilheteria de sua tentativa de reboot light de 2006, a Warner Bros., a partir de 2008, passou a encomendar uma releitura completa do mais icônico personagem da DC Comics e foi Christopher Nolan, então no ápice de sua carreira com sua Trilogia Batman, que levou a ideia de seu protegido David S. Goyer, quadrinista envolvido em adaptações de HQs para o audiovisual desde a continuação de O Corvo, em 1996, passando por Nick Fury: Agente da S.H.I.E.L.D. e pela Trilogia Blade, para os executivos do estúdio que passaram a desenvolvê-la contratando Zack Snyder (diretor também muito afeito à adaptações de quadrinhos com seu 300 e Watchmen: O Filme) para a direção. Em outras palavras, o pacote estava completo e “favorável” ao Azulão.
Mas, novamente, há que se levar em consideração o mandamento de “mudança” da Warner para que O Homem de Aço seja apreciado além do usual “pancadaria bacana” ou mesmo compreendido por aqueles que, como eu, tenho que confessar, preferem a pegada mais clássica do herói. Mudança costuma ser boa, como foi a versão de Nolan para o Batman, mas também pode ser ruim, como a versão de Marc Webb para o Homem-Aranha. O roteiro de O Homem de Aço aproxima o filme fortemente da ficção científica e refaz (ou reimagina, expressão da moda) a mitologia do herói sem, no meu entender, efetivamente destruir o adorado personagem, como muitos dizem por aí. Afinal, a visão de Goyer é peculiar ao trabalhar a destruição de Kripton como elemento diretamente responsável pelo efetivo surgimento do herói, sem que elementos externos interfiram, como foram os casos das versões cinematográficas anteriores.
Com isso, Goyer amarra a “Jornada do Herói” em um texto circular, mas linear no tempo, que faz uso eficiente de flashbacks por sua vez não lineares (diria que quase que inspirados no que Quentin Tarantino costuma fazer com suas narrativas) que informam e dão estofo ao personagem na medida da progressão do arco principal. Somando-se a isso há a sempre característica (mas repetitiva como a de Tim Burton) visão de Snyder, trabalhando um viés sombrio, que é refletido em praticamente todos os elementos de design da produção, além do uso constante da computação gráfica com elemento essencial.
O resultado, por mais que essa versão sombria do Superman não me agrade completamente, é um espetáculo audiovisual que arrebata o espectador mais descrente desde os primeiros segundos em Kripton, até o longo – exageradamente longo – embate entre Kal-El e seus compatriotas enfurecidos. Mas vamos por partes, pois a gana de “mudar, mudar, mudar”, trouxe tanto aspectos interessantíssimos quanto problemas para a fita.
Começando pelo positivo, há o impressionante prólogo em Kripton que merece comendas por recriar o planeta invertendo completamente nossas expectativas. O “paraíso” visto em Superman – O Filme, dá lugar ao inferno, um planeta sendo destruído por seus próprios habitantes e que está passando por um golpe de estado capitaneado pelo General Zod (Michael Shannon). Jor-El (Russell Crowe), que teve, com sua esposa, o primeiro bebê gerado espontaneamente em séculos no planeta – elemento narrativo que dá o tom para toda a produção, aliás – é a única voz da razão, mas seus esforços para salvar o planeta são em vão e, claro, o bebê acaba na Terra e Zod e seus seguidores na Zona Fantasma. Mas o que realmente tira o prólogo do lugar comum é o estupendo trabalho de design de produção de Alex McDowell (Clube da Luta, Minority Report, Watchmen), casado com a direção de arte de Kim Sinclair (Náufrago, O Último Samurai, Avatar) e os figurinos de James Acheson (Trilogia Homem-Aranha de Sam Raimi) e Michael Wilkinson (300, Watchmen, Tron: O Legado). Desde a interface dos computadores até os mínimos detalhes das mais variadas vestimentas usados pelos personagens (reparem como Jor-El tem não apenas uma armadura cerimonial, como também uma espécie de roupa de baixo, que claramente é a base para o uniforme do Superman, além de uma armadura de combate, isso em menos de 30 minutos). A fluidez da fusão entre tecnologia e biologia, com um planeta que faz uso de naves espaciais da mesma maneira que animais alados (que lembram Avatar, claro), que trata a vida como algo já pré-determinado e inescapável torna esse começo de O Homem de Aço algo que realmente merece atenção e gera tanta curiosidade que eu facilmente veria um filme prólogo inteiro só passado nesse universo.
Findo o primeiro ato, uma elipse nos leva ao presente da história em que vemos Clark Kent (Henry Cavill que, muito sinceramente, não mostrou a que veio ainda) já adulto tentando descobrir quem ele é. Aqui, o roteiro de Goyer parte da premissa que o espectador conseguirá fazer a conexão entre a chegada de sua nave à Terra e suas dúvidas que o levaram a peregrinar pelo mundo, e, a não ser que o espectador nunca tenha ouvido falar do Superman, caso em que ele próprio talvez seja um extraterrestre, isso funciona muito bem. Mas, muito espertamente, os flashbacks rápidos a vários momento do passado de Kent começam a pipocar pela tela, com transições muito bem pensadas por Snyder que, com a montagem de David Brenner (conhecido por trabalhar em épicos como Independence Day, O Dia Depois do Amanhã, 2012, O Patriota e outros), garantem de um lado um trabalho expositivo sem ser enfadonho e, do outro, impedem o desnorteamento do espectador. O domínio narrativo de Snyder neste ato da história e também no prólogo assemelha-se ao que é possível detectar em Watchmen, seu filme mais complexo (e de longe!).
Há uma tentativa de Goyer de transpor o mito messiânico do Superman, visto no cinema de forma eficientíssima em Superman – O Filme, para esta versão. No entanto, ainda que os elementos estejam lá (a idade do personagem, a “esperança” no símbolo da casa de El, as tomadas de Snyder que martirizam Superman e assim por diante), eles não funcionam e desaparecem por completo soterrados pelos escombros da pancadaria de começa faltando ainda uma hora de filme.
Todo o cuidado do trabalho de Snyder e equipe começa a ruir quando o conflito efetivo começa. Com a chegada do General Zod e seu grupo de kriptonianos à Terra para recuperar o Codex escondido por Jor-El nas células de Kal-El (algo que Zod só descobre um pouco mais adiante), a narrativa deixa de ser propriamente uma narrativa e passa a ser uma enorme, arrastada e interminável rinha de galo regada a toneladas de computação gráfica. E vejam bem: não tenho nada a reclamar do CGI em si, pois, nesse quesito, o filme é praticamente perfeito do começo ao fim, desde as sequências de voo, passando pelas demonstrações dos poderes do Superman, até a pancadaria. Snyder realmente está em seu ambiente quando lida com o CGI pesado e, criando ou não situações de hiper-estilizações (como em 300), seu trabalho sempre se mostra eficiente.
Mas, um pouco que demonstrando o sinal dos tempos e a percepção da produtora sobre o que o público queria, o filme então parte para a troca de socos, chutes e rajadas de visão de calor por quase que incessantes 60 minutos. Começando em uma única rua (!!!) em Smallville e expandido para a Ásia e principalmente para Metrópolis, tudo o que vemos é um cansativo circo que desfaz a lógica de tudo o que foi estabelecido antes. Kal-El deixa de ser alguém procurando sua identidade para tornar-se um guerreiro nato – que segura a onda contra soldados treinados com armaduras – que, mesmo sabendo que os kriptonianos querem ele e o seguiriam para onde quer que ele voasse, decide permanecer destruindo Smallville pedaço por pedaço (e sim, eu sei que em Metrópolis há a necessidade de luta na cidade pela instalação do aparelho “terraformador” lá, mas, mesmo assim, havia outras escolhas). David Brenner entra em uma espécie de transe à base de Red Bull com “bolinhas”, uísque e algumas carreiras de pó branco para metralhar o espectador com cortes de milissegundos que só permitem a identificação do protagonista por sua roupa azul e vermelha (e sim, achei o design sensacional, apesar dos tons exageradamente escuros) e mesmo assim só com muita boa vontade. É o problema da “geração Transformers“: tudo tem que ser rápido e destruidor, pois qualquer pausa de cinco segundos para respirar tornar o filme “chato”.
Além disso, o roteiro de Goyer insiste em inserir Lois Lane (Amy Adams) em todos os momentos. Sua presença no Ártico faz sentido e é bem trabalhada no segundo ato da projeção, mas, no terceiro ato, ela não é mais do que a prova de que Goyer não sabia o que fazer com ela. Sua permanência em tela torna-se forçada, ilógica (para que Zod a queria em sua nave e porque, PORQUE ela tinha que estar no Hercules C-130 pilotado pelo Coronel Nathan Hardy, vivido por Christopher Meloni?) e, vamos ser sinceros, irritante.
E, já que estou mencionando o terceiro ato de O Homem de Aço, não poderia deixar de abordar o polêmico final (SPOILERS a seguir). Para boa parte dos espectadores, Superman assassinando Zod ao final é como uma heresia, uma traição aos princípios basilares do personagem. E sim, de certa forma é mesmo, mas lembrem-se como comecei a presente crítica: a palavra de ordem é mudança. A grande mudança, aqui, é que, apesar da aparente naturalidade com que Kal-El assume o manto de guerreiro (e aquele dirigismo biológico se faz presente aqui, mostrando que ele não é só um guerreiro, não é só um salvador, mas ele é ele, algo diferente, livre para ser o que quiser), fato é que ele é destreinado e, diante do desespero do momento, aquela era a única solução factível. Além disso, ele, impotente, deixara seu pai morrer no tornado (ok, essa sequência é patética, mas aceite-mo-la assim mesmo já que não tem jeito). E, se pensarmos friamente, como manter um kriptoniano mau vivo na Terra? Só se uma prisão de kriptonita fosse construída, elemento que, nesse filme, ainda não está “disponível”. E mesmo assim haveria o risco de fuga e tudo mais. Portanto, somando-se todos os fatores, quebrar o pescoço de Zod era o menor dos males. Mas o melhor é ver que o roteiro de Goyer não trabalha esse aspecto de maneira leve e boba. Superman sofre com o que fez e potencialmente se desenvolve com isso. Talvez esse seja o ponto em que ele mentalmente decida nunca mais matar.
Saindo um pouco do roteiro, não poderia deixar de tratar, aqui, da trilha sonora de Hans Zimmer. Ainda que a palavra de ordem tenha sido “mudança”, a música-tema de Superman composta por John Williams para o filme original de 1978 é um dos mais conhecidos temas cinematográficos já criados, ali no mesmo panteão dos temas de Indiana Jones, Tubarão, das trilhas de Ennio Morricone para a Trilogia dos Dólares e outras. Com isso, quero dizer que a escolha de não usar nem mesmo um arranjo da música-tema é quase que como um desrespeito ao legado setentista do herói. O Homem de Aço teria se beneficiado e muito de uma versão “zimmeriana” do hino de Williams e essa falta é tão sentida quanto seria sentida se a música tema de Star Wars não fosse usada nos capítulos futuros da franquia. E não estou aqui desmerecendo o trabalho de Zimmer na trilha, pois ele é eficiente, especialmente em seu próprio tema para o Superman, mas faltou algo memorável, algo que marcasse a fita e o personagem.
O Homem de Aço é uma guinada nas versões cinematográficas de Superman, um filme que, quando acerta, acerta no centro do alvo, mas, quando erra, quase põe tudo a perder. É um ótimo divertimento que poderia ter sido uma nova obra-prima sobre o personagem.
O Homem de Aço (Man of Steel, EUA/Canadá/Reino Unido – 2013)
Direção: Zack Snyder
Roteiro: David S. Goyer
Elenco: Henry Cavill, Amy Adams, Michael Shannon, Diane Lane, Russell Crowe, Antje Traue, Harry Lennix, Richard Schiff, Christopher Meloni, Kevin Costner, Ayelet Zurer, Laurence Fishburne, Dylan Sprayberry, Cooper Timberline
Duração: 143 min.