Num futuro próximo, para ajudar na manutenção da casa, robôs da série NDR fazem parte do cotidiano das famílias. Comprado pelo patriarca Richard Martin (Sam Neill), Andrew (Robin Williams) convive e fazer parte do clã. Contudo, esse androide mostra-se diferente dos outros, uma vez que suas habilidades cognitivas o colocam num lugar privilegiado perante os humanos, recebendo sentimentos verdadeiros por parte de todos da casa, que o veem como um integrante da família. Mas tudo muda quando essa máquina adquire inteligência social, reivindicando autonomia e liberdade, buscando cada vez mais se integrar, agora em nome do amor, no mundo humano.
Quando se é ingênuo, qualquer afetação de cunho lírico consegue comprar o nosso julgamento e então plenamente dizemos: “grande filme”, “emocionante”. Mas o que, exatamente, tem de verdadeiramente emocionante no filme de Chris Columbus? Veja que tudo aquilo que se apresenta aos olhos de maneira bonita deve ser julgado de modo ainda mais firme para que se constate que seu aspecto emocionalmente afetado é verdadeiro e não apenas uma válvula de escape para esconder o vazio piegas de um enredo que, retirando a emoção aparente, resta em algo menor.
O que esse filme faz, com sua insistente trilha sonora melancólica, é forjar algo que não se sustenta em termos de texto. É como tocar a Sonata no.14, Moonlight, de Beethoven, para tapar um buraco de cunho dramático num filme de baixa relevância. A trilha sonora, neste filme, é um caso à parte: ela adere-se ao nosso juízo e faz com que enxerguemos o curso das ações da trama como dramaticamente emocionantes, quando não é. Inventa-se, portanto, uma complexidade que não tem, e se vale do gênero ficção científica para isso.
Um filme deve buscar o seu ápice puramente através da trama, do texto. Os aspectos compositivos devem ser secundários. Lembro-me de que Ingmar Bergman, em Sonata de Outono, só utiliza do som uma única vez e nos faz desmanchar por inteiro numa sequência de pouco menos que cinco minutos. É isso que quero dizer: o texto precisa ser superior aos outros aspectos compositivos. Assim, desinteressa-nos, ou deveria nos desinteressar, porque não demora que percebamos o fato de que o enredo não consegue se aprofundar em nenhum aspecto relevante, em nenhum dos inúmeros conteúdos que clamam por um mergulho de cabeça em questões filosóficas, estéticas, sociais ou morais. Para a migalha de inteligência que O Homem Bicentenário entrega, é até demais que tenha duas horas de duração.
Tenho certeza, a respeito da trama, que o filme deveria ter seguido por outro caminho que não o romance. É com o drama amoroso que ele se perde na segunda parte do longa-metragem, com um cansadíssimo roteiro sobre um homem deslocado (um robô, na verdade) que “apaixona-se” por uma humana e nisso modifica a sua essência para poder sentir as paixões, numa versão estruturalmente inferior ao dilema de Frankenstein e Asas do Desejo. O que seria interessante, pelo rumo que caminha a película até a primeira hora, era investigar e aprofundar o enredo na questão do luto e das perdas de quem se ama. Que ele se tornasse humano, mas que entrasse, então, numa espiral que revelasse, por um lado, a sua imortalidade, e, por outro, a implacabilidade da vida que retira todos a quem ele ama. O roteiro segue por aí até um dado momento, mas abandona essa proposta para fazer um cinema comercial, de maior alcance, ou algo assim. Ou faltou criatividade, que é a minha hipótese, e então se escolhe algo mais fácil para finalizar a película, que é essa proposta amorosa que não tem como errar.
O problema está menos nas atuações do que nas escolhas de trama. Andrew Martin, o robô, está absolutamente subjetivado e pouco convence como um robô, mas não pela atuação excelente de Robin Williams, mas porque o trabalho de personagem é ruim e nos dá a impressão de que ele sempre teve consciência humana. Inúmeras passagens iniciais em que ele demonstra uma espécie de razão são inverossímeis. Isso não é um robô inteligente, como se quis, mas uma caricatura de robô que nada tem de robótico. Com isso, observamos que o roteiro é fraquíssimo e não se esforça em nada do que se propõe. No mais, há algumas cenas bonitas e falas marcantes, como a sequência do piano, os cortes que mostram as passagens dos anos, o fato dele, o androide, não poder chorar e ainda assim sentir dor física, entre outras.
Cheio de incongruências, essa tentativa de enredo frankeinsteiniano, que é a adaptação da novela de Isaac Asimov, O Homem Bicentenário, dirigido por Chris Columbus, é um filme pretensioso do início ao fim. Isto é: promete a todo instante entregar o suprassumo da cinematografia por ter em mãos um texto-base interessante mas acaba despencando do alto do seu extravagante projeto e consequentemente frustrando por não conseguir sair de um ciclo vicioso que é transformar o seu filme em algo piegas, clichê e previsível. Surpreende que a estrutura da película mostre-se numa encruzilhada entre ter a ambição de querer ir além e mostrar um baixíssimo impulso criativo na construção da fábula do filme. Sem conceber nada de inovador, O Homem Bicentenário coloca-se como uma película afetada e presunçosa que, embora muito popular entre determinado público, não consegue oferecer Cinema como deveria ser.
O Homem Bicentenário (Bicentennial Man, 1999, EUA)
Direção: Chris Columbus
Roteiro: Nicholas Kazan (baseado na novela de nome homônimo de Isaac Asimov)
Elenco: Robin Williams, Sam Neill, Embeth Davidtz, Hallie Eisenberg, Wendy Crewson, Oliver Platt, Kiersten Warren, Stephen Root, Angela Landis, Lindze Letherman, Bradley Whitford, Igor Hiller, John Michael Higgins, George D. Wallace, Lynne Thigpen, Jay Johnston
Duração: 132 min.