J.R.R. Tolkien nos trouxe, através de O Senhor dos Anéis, um dos universos mais amplos e ricos (se não for o mais) da fantasia. Utilizando seus amplos conhecimentos como filólogo, o professor criou não só uma série de locais, personagens, como línguas que vão do Quenya à lingua negra de Mordor. Antes disso tudo, porém, em um livro escrito para seus filhos, o autor nos introduziu, de forma simples e em menos de 300 páginas a um dos elementos centrais de suas narrativas: os hobbits.
O Hobbit contém nas entrelinhas a ambição de Tolkien, mas por si só é um livro despretensioso (lembremos que o autor editou sua obra após escrever O Senhor dos Anéis), uma leitura leve que busca contar uma história de forma divertida com focos pontuais de tensão. É evidente que Peter Jackson, buscou fazer mais que isso. Sua nova trilogia de filmes é, primariamente, um prelúdio de O Senhor dos Anéis, buscando explicar a cada curva como a situação da Terra-Média chegou até aquele ponto. Jackson bebeu diretamente dos apêndices de O Retorno do Rei, estendendo a curta história de Bilbo Bolseiro em três filmes de quase três horas cada e o resultado, como deixei claro em minha crítica da versão estendida de A Desolação de Smaug, é uma narrativa cansativa e exageradamente extensa, que perde a alma da obra criada por Tolkien.
Ainda assim, apesar de uma decepção em 2012 e uma maior ainda em 2013, fui ansioso assistir A Batalha dos Cinco Exércitos, esperando encontrar aqui a salvação desta trilogia. Os temores iniciais, contudo, vieram à tona e se concretizaram logo nos vinte minutos iniciais da projeção. Peter Jackson simplesmente destrói o que muitos consideram o clímax do livro, encaixando tal momento nos vinte primeiros minutos de seu terceiro filme. A sensação de que estamos assistindo ao encerramento do filme anterior é evidente – A Desolação de Smaug foi roubado de seu momento mais dramático simplesmente para que Peter pudesse criar um gigantesco cliffhanger, certamente temendo que as audiências não fossem assistir ao terceiro filme após tal evento fatídico.
Essa péssima escolha não só levando em conta o material original, como a própria narrativa dos dois filmes, ainda vem munida de um terrível aliado. Refiro-me aqui à ausência de uma marcante trilha sonora para compor esse momento dramático. Howard Shore certamente não está à altura de sua composição na trilogia O Senhor dos Anéis e não traz sequer uma melodia marcante. Somos deixados com uma angustiante sensação de vazio ao ver sequências verdadeiramente épicas sendo desconstruídas pela ausência da música. Essa característica, que já vem do filme anterior, se estende para o restante do longa-metragem e a trilha somente recupera nossa atenção nos créditos finais através de The Last Goodbye, criada por ninguém menos que Billy Boyd, também conhecido como Pippin.
A escolha por uma ênfase menor na trilha, que claramente admite um volume muito reduzido quando comparado aos efeitos sonoros em si, poderia significar um enfoque nos sons diegéticos, mas a edição do som claramente falha no quesito não nos trazendo os necessários sons ambientes. Por exemplo, durante o ataque de Smaug à cidade do lago em poucos momentos conseguimos ouvir os gritos da população, algo que deveria contar com um maior destaque a fim de construir não só a tensão como o realismo da cena. A apatia do espectador começa a se formar logo cedo.
O roteiro, notavelmente o ponto mais fraco desde Uma Jornada Inesperada, também não ajuda e busca enfatizar o drama pessoal de cada personagem dentro da obra. Essa escolha seria acertada, não fosse a maneira como Jackson a realiza ou até mesmo a ausência de construção de personagem ao longo dessa nova trilogia. Vale lembrar que, na ocasião do lançamento de O Retorno do Rei, já conseguíamos nos aproximar de cada um dos membros da sociedade e até mesmo os mais coadjuvantes – de Frodo a Gimli cada um deles passa por notáveis mudanças ao longo da trilogia, recebendo pontuais e significativos focos ao longo da história: a crescente amizade entre o anão e Legolas é a mais evidente prova disso.
Já em O Hobbit, o diretor e co-roteirista, priorizou algumas subtramas específicas, a mais notável delas sendo o controverso romance entre Tauriel e Kili. Esse aspecto novamente se faz presente em A Batalha dos Cinco Exércitos, garantindo ainda um duelo exageradamente comprido com o orc abaixo de Azog. Logo percebemos que os dramas pessoais citados acima se resumem a um personagem tentando proteger o outro, ocasionando em uma desconfortável repetitividade da trama. A situação ainda piora quando percebemos que muitas das subtrama encerradas, de fato, não acrescentam em nada à narrativa. Existem, contudo, honrosas exceções, como a doença que assola Thorin – Richard Armitage realmente consegue nos convencer – certamente um ponto interessante da trama, ainda que seja resolvido rápido demais.
As lutas em si são bem construídas, com o apoio de uma fotografia mais controlada, que não peca pelo excesso de planos. As tomadas aéreas, que são muitas e não chegam a incomodar verdadeiramente, nos trazem visões mais amplas da guerra, tentando construir a ideia de um único confronto no imaginário do espectador. Infelizmente a montagem não ajuda e não sabe intercalar os diferentes focos da batalha – em determinado ponto chegamos a esquecer que existem outros personagens lutando em outro lugar. Esse fator é diretamente influenciado pelos já citados longos duelos.
Aqui devo abrir um parêntese especial sobre o confronto com Azog. Já alerto para possíveis spoilers neste parágrafo, portanto, se não querem saber nada sobre o filme antes de assisti-lo recomendo que pulem para o próximo. A briga entre Thorin e o orc pálido é uma cópia descarada de Éowyn x Rei-Bruxo de Angmar, uma reciclagem barata que evidencia a falta de criatividade ou até mesmo de conteúdo dos roteiristas para construir esse longo desfecho. Essa mesma reciclagem se estende para outros personagens, em especial Alfrid, uma cópia de Gríma de As Duas Torres, que é salvo da mesma maneira que sua contraparte: “já foi derramado sangue o suficiente”.
O que impera no longa-metragem é seu espetáculo visual. Do dragão sobrevoando a Cidade do Lago até as hordas de inimigos não temos dúvidas da qualidade dos efeitos empregados. Os defeitos somente aparecem nos momentos de menor movimentação, onde, por exemplo, vemos elfos-clones parados lado-a-lado, causando certo desconforto visual. Há uma notável ausência de efeitos práticos, que dão lugar ao CGI quando este poderia ser mais controlado, especialmente tendo em vista o envelhecimento da obra – daqui a dez anos, será que ele permanecerá tão realista? Certos pontos obviamente não pediam o uso de tal fator, mas foi usado mesmo assim.
O resultado final de A Batalha dos Cinco Exércitos é um filme com o qual não conseguimos nos identificar. Há pouca progressão de personagens – e quando ela aparece é de forma artificial – um excesso de lutas que acabam cansando o espectador pela sua repetitividade, sem momentos marcantes de fato (como não lembrar da cavalgada dos Rohirim em O Retorno do Rei?) e um enfoque desnecessário em subtramas dispensáveis. O desfecho que merecíamos ocorre de forma rápida e fugaz e mesmo a história do necromante é resolvida de forma acelerada, como se Peter Jackson quisesse se livrar de forma apressada de cada um dos nós que deixou aberto, ao mesmo tempo que tenta, ao máximo, deixar explícito que o que vem depois é sua trilogia de O Senhor dos Anéis.
Um longa-metragem que corrobora nossos temores iniciais, se firmando, possivelmente, como o pior filme de Peter Jackson sobre o rico universo de J.R.R. Tolkien.
O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos (The Hobbit: The Battle of the Five Armies – Nova Zelândia/ EUA, 2014)
Direção: Peter Jackson
Roteiro: Fran Walsh, Philippa Boyens, Peter Jackson, Guillermo del Toro (baseado no livro de J.R.R. Tolkien)
Elenco: Ian McKellen, Martin Freeman, Richard Armitage, Luke Evans, Evangeline Lilly, Lee Pace, Benedict Cumberbatch, Cate Blanchett, Orlando Bloom, Manu Bennett, Aidan Turner, Hugo Weaving, Dean O’Gorman, Christopher Lee, James Nesbitt
Duração: 144 min.