Home LiteraturaAcadêmico/Jornalístico Crítica | O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell

Crítica | O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell

Leitura antropológica de arquétipos bastante simbólicos na história da humanidade.

por Leonardo Campos
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Como disciplina acadêmica, a Antropologia se dedica ao estudo do ser humano em diversas culturas e contextos históricos, bem como aborda os arquétipos como elementos fundamentais para a compreensão da complexidade das sociedades e da psique humana. Os arquétipos, conceito desenvolvido inicialmente por Carl Gustav Jung, se referem a padrões primordiais e universais presentes no inconsciente coletivo da humanidade. Eles são símbolos ou imagens que representam elementos básicos da psique humana, como o herói, a mãe, o velho sábio, dentre outros. Sendo assim, nesse campo das reflexões em humanidades, os arquétipos são estudados como modelos culturais recorrentes que influenciam a forma como os indivíduos percebem o mundo e se relacionam uns com os outros. Ao analisar os arquétipos em diferentes contextos culturais, os antropólogos buscam identificar padrões comuns que transcendem as fronteiras geográficas e temporais. Isso permite uma compreensão mais profunda das motivações, crenças e práticas sociais que norteiam o comportamento humano em diversas sociedades.

Podemos ver tudo isso contemplado na jornada do herói, o conceito narrativo popularizado por Joseph Campbell em seu livro O Herói de Mil Faces. Em sua estrutura, o autor descreve um padrão comum encontrado em muitas lendas, mitos e histórias ao longo da história humana. A jornada é composta por várias etapas que representam a transformação e o crescimento do protagonista, bem como a sua relação com os demais componentes narrativos. Na 1ª etapa, temos o Mundo Comum, momento em que o herói é apresentado em seu ambiente cotidiano. É uma passagem que serve para estabelecer a normalidade da vida do herói antes da aventura começar. Permite ao público se conectar com o herói e entender seu ponto de partida. Logo depois, temos o Chamado à Aventura, a 2ª etapa, “a hora” em que o herói recebe um convite ou desafio que o tira de sua zona de conforto. Este é o evento catalisador do começo da jornada. Pode ser um problema que precisa ser resolvido, uma busca ou uma oportunidade irresistível. Mais adiante, na 3ª etapa, temos a Recusa do Chamado, quando o herói inicialmente resiste ao chamado à aventura. Essa hesitação é natural, mostrando que o herói tem medos e dúvidas, o que o torna mais humano e real. Funciona muito bem na identificação do público com as demandas dos personagens. Antecipa a 4ª etapa, o Encontro com o Mentor, quando o herói encontra uma figura de mentor que oferece conselhos, treinamento, ou itens mágicos. O mentor oferece conhecimento e suporte necessários para que o herói possa enfrentar a jornada.

Na 5ª etapa, temos a Travessia do Primeiro Limiar. O herói se compromete com a aventura, cruzando de seu mundo conhecido para um território desconhecido e perigoso. Este é o ponto de não retorno, onde o herói deixa sua zona de conforto e enfrenta o desconhecido. Thelma & Louise, O Silêncio dos Inocentes, Dança com Lobos, por ilustração, são algumas das narrativas que dialogam com todas essas etapas. Se você já assistiu alguns desses, caro leitor, faça vocês mesmo a análise e perceba a similaridade estrutural do desenvolvimento dessas histórias. Na 6ª etapa, temos o estabelecimento dos Testes, Aliados e Inimigos, com o herói a enfrentar desafios, fazer novos amigos e encontrar inimigos. Essa é uma fase crucial para o desenvolvimento do herói e para estabelecer relações importantes que afetarão a jornada. Mais adiante, temos a 7ª etapa, chamada de Aproximação da Caverna Oculta. O herói se aproxima de um local de intenso perigo ou de um confronto interno significativo que funciona como preparação para a principal provação ou crise da aventura, onde o herói deve enfrentar seus maiores medos. É a pavimentação dos caminhos para a Provação Suprema, 8ª etapa. O herói enfrenta um grande desafio ou calamidade que parece insuperável. A depender da história, talvez seja um dos momentos de maior tensão na jornada, onde o herói é testado ao limite. Pode implicar uma luta física, um dilema moral ou uma luta interna.

Em sua 9ª etapa, a jornada do herói traz a Recompensa, ou alegoricamente, se “Apoderar da Espada”, pois ao superar a provação suprema, o herói conquista uma recompensa que pode ser um objeto, conhecimento, ou uma nova perspectiva, que será essencial para o avanço da jornada. É o ponto de partida para a 10ª etapa, o Caminho de Volta, fase onde o herói começa a jornada de volta ao mundo comum com a recompensa adquirida. Importante ressaltar que esse caminho de volta não é isento de desafios e o herói deve decidir como aplicar o que foi aprendido na aventura ao mundo comum. As duas últimas etapas definem os resultados da história que nos é contada. No tópico 11, temos a Ressurreição, quando o herói enfrenta uma última prova que expande verdadeiramente sua transformação. É uma etapa que segundo o autor, representa a purificação e transformação final do herói antes de retornar ao mundo comum. Na 12ª etapa, o retorno com o Elixir, momento em que o herói retorna ao seu mundo comum, agora transformado e armado com a recompensa que pode beneficiar a todos. Em linhas gerais, a jornada termina com o herói reintegrado à vida cotidiana, muitas vezes trazendo algo de valor (um “elixir”) que pode ser físico, subjetivo ou mesmo uma nova sabedoria. Essas etapas, no entanto, não são rígidas e podem variar dependendo da história. Elas oferecem um mapa útil para o desenvolvimento de narrativas, mostrando o crescimento emocional e psicológico do herói ao longo da jornada.

Alguns consideram esse padrão problemático, pois é algo que supostamente acaba criando uma homogeneização das narrativas, mas como já mencionado em outras reflexões, basta ler o clássico com postura crítica e entender que rigidez não combina com criatividade, por isso, basta compreender a proposta para reverte-la, caso considere necessário. Em sua jornada, o escritor nova-iorquino Joseph Campbell demonstrou um interesse profundo pela mitologia e religião. Estudou literatura e línguas clássicas em universidades renomadas e posteriormente se dedicou à pesquisa e escrita sobre mitologia comparada. Sua jornada intelectual o levou a viajar pelo mundo, estudando e coletando histórias de diversos povos e culturas. Por meio da perspectiva antropológica, uma das contribuições mais significativas de sua carreira foi a identificação do Monomito, ou o “Herói de Mil Faces”, um padrão recorrente que ele encontrou em mitos e lendas ao redor do globo. Campbell percebeu que independentemente da cultura de origem, as histórias de heróis seguiam um ciclo comum de aventura, desafios, aprendizado e transformação. Essa descoberta revolucionou a forma como entendemos as narrativas mitológicas e seu “significado universal”, trazendo uma longínqua contribuição para as composições ficcionais de entretenimento, ressoando no memorando para roteiristas hollywoodianos de Christopher Vogler, transformado no livro A Jornada do Escritor.

Ao longo de sua vida acadêmica, Joseph Campbell viveu sua própria jornada do herói, pois enfrentou dificuldades acadêmicas, críticas e momentos de incerteza, ao se tornar um defensor da ideia de que todos nós temos o potencial de assumirmos a postura de heróis em nossas próprias vidas. Para além das ideias do livro, num panorama das reflexões empreendidas em palestras, workshops e afins, ele apregoava que a jornada do herói não era apenas uma jornada épica reservada para os mitos, mas sim uma jornada interior que cada um de nós poderia empreender. Ao abraçar nossos desafios, aprender com nossas experiências e buscar a verdade em nossas vidas, podemos nos tornar os heróis de nossas próprias histórias. E é por isso que o seu modelo estrutura tantas narrativas ficcionais ainda na contemporaneidade, pois permite doses generosas de identificação de leitores e espectadores dos mais diversos produtos culturais publicados e exibidos ao redor do planeta, atingindo, inclusive, a cultura oriental. Para o autor, tal como os heróis dos mitos, podemos enfrentar nossos próprios desafios, superar nossos medos e emergir transformados, prontos para abraçar o desconhecido com coragem e determinação.

Pode parecer romântico e idealista, mas não possui certa dose de pertinência?

E voltando: para investigar os arquétipos, os antropólogos utilizam uma variedade de métodos e abordagens, incluindo a observação participante, a análise simbólica, a etnografia comparativa e a interpretação de mitos e rituais. Através da imersão em contextos culturais específicos e da coleta de dados empíricos, os pesquisadores conseguem identificar os arquétipos que moldam a visão de mundo e as práticas sociais de determinada comunidade, sendo esse um dos caminhos adotados por Joseph Campbell como metodologia investigativa para a composição do livro O Herói de Mil Faces. Ao identificar os padrões arquetípicos que permeiam diferentes sociedades, o autor nos revela as estruturas fundamentais que orientam as relações interpessoais, os sistemas de crenças, as práticas rituais e as formas de expressão cultural. É um conceito aplicado demasiadamente em nossa cultura e que não deixa de ter os seus críticos e revisores. Mas, ainda assim, é envolvente e promove muita identificação com que se dedica a compreendê-los. Talvez por estarmos, há eras, imersos num contexto de entretenimento que os utiliza como padrão narrativo. Ademais, a análise dos arquétipos permite uma compreensão mais profunda dos conflitos e das contradições que emergem nas interações sociais. Ao reconhecer a presença de arquétipos como o herói, o bode expiatório ou o mentor em narrativas culturais e práticas sociais, os pesquisadores conseguem interpretar os significados subjacentes e as dinâmicas de poder que moldam a nossa existência num diverso tecido social dominado por tensões.

O Herói de Mil Faces (The Hero with a Thousand Faces) — EUA, 1949
Autor: Joseph Campbell
Tradução: Adail Ubirajara Sobral
Editora: Pensamento
416 páginas

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