É inegável a grandiosidade de O Grande Motim. Terceira – e longe de ser a última – adaptação cinematográfica de romance histórico escrito por Charles Nordhoff e James Norman Hall, por sua vez baseado na história verdadeira do motim contra William Bligh, capitão do navio Bounty da marinha britânica no século XVIII, o filme dirigido por Frank Loyd é um épico do bem contra o mal que literalmente atravessa os sete mares.
As forças opostas, aqui, são representadas, de um lado, pelo vilanesco Capitão Bligh, vivido por Charles Laughton, que sente prazer em subjugar sua tripulação com constantes torturas físicas ao menor sinal de algo errado verdadeiro ou imaginado e, do outro, pelo bom moço segundo-em-comando Fletcher Christian, vivido pelo eterno galã Clark Gable, que foi obrigado a raspar seu característico bigode para a produção. Não há dúvidas sobre quem representa o que desde os primeiros segundos de projeção. Gable aparece primeiro, sorridente, altivo, benevolente enquanto Laughton ganha pompa e circunstância que prenuncia seu papel sinistro, ao chegar no Bounty pronto para zarpar do porto de Southampton, na Inglattera, em uma missão de dois anos para o Taiti.
O confronto se estabelece logo nesse início e não abandona mais a fita até o final. Laughton constrói um personagem horripilante cuja feiura física, carregada por um figurino de cores escuras, reflete a escuridão de sua alma. Seu Capitão Bligh é um grande marinheiro, mas um terrível ser humano e, mesmo que o verdadeiro Bligh nem de longe – conforme os dados históricos – tenha sido assim, a composição de Laughton é extremamente convincente, sem dúvida algum criando um dos grandes vilões da Sétima Arte.
Aliás, nesse tocante é interessante notar que Laughton sempre foi um ator muito consciente de sua aparência física que sempre marcou sua escalação para papéis pouco benevolentes nesse quesito (ele havia feito Nero em O Sinal da Cruz e Dr. Moreau em A Ilha das Almas Selvagens e seria consagrado, em 1939, como Quasímodo em O Corcunda de Notre Dame) e seu trabalho em oposição ao altivo e belo Clark Gable foi particularmente difícil para ele. Mas a grande verdade é que a presença de Laughton, em tela, é incrivelmente arrebatadora, ao ponto de ele facilmente conseguir minimizar a beleza física de seu colega.
Afinal, Gable, apesar de ter um papel importantíssimo – ele é o pivô do motim – não recebe do roteiro um tratamento muito profundo. Esse cuidado vai para Bligh, personagem que, apesar de muito claramente ser moldado para gerar ódio nos espectadores, tem camadas interessantíssimas de complexidade que Laughton sabe trabalhar com seus trejeitos e inflexões. Percebemos, ali, profunda lealdade à coroa e um exímio navegador, algo que é deixado às escâncaras na sequência em que ele vitoriosamente navega um bote salva-vidas por quase 50 dias para chegar ao Timor. Com isso, mesmo que inexoravelmente execremos Bligh, não podemos deixar de admirar sua coragem e sua argúcia técnica.
Mas a grandiosidade de O Grande Motim reside também na reconstrução do Bounty, com base na carcaça verdadeira do Commodore II, navio que naufragou na costa da Cidade do Cabo. O Bounty é trazido à vida com muito realismo, graças a um design de produção detalhista e convincente que não glamoriza o navio. Ele é comparativamente pequeno ao que estamos “acostumados” a ver em filmes dessa natureza e entulhado de marinheiros e oficiais, quase que com seu próprio “trânsito interno” que, aliás, é muito bem coreografado por Frank Loyd.
Além disso, uma boa parte da fotografia da produção foi feita no mar mesmo, nas imediações da Ilha Catalina, na Califórnia e também no Taiti, com imagens depois utilizadas em sobreposição quase perfeita. Assim, não há a sensação de vermos navios em miniatura em tanques dentro de estúdios. Há uma veracidade muito grande no que vemos do começo ao fim, especialmente nas tomadas em alto mar.
E é interessante como Loyd faz questão de usar filtros mais suaves, passando uma aura de sonho, quando a tripulação chega ao Taiti. Fica a impressão de que aquilo que nós, assim como os personagens, poderão acordar de repente daquele sonho paradisíaco e voltar à dura realidade do convés do Bounty e da crueldade de Bligh.
Estruturalmente, o roteiro foca o primeiro terço em construir a vilania de Bligh em oposição à relutância de Christian, em que é muito bem sucedido. Quando a “sequência de sonho” no Taiti começa, ela acaba ocupando talvez tempo demais, com muitas idas e vindas, deixando pouco tempo para o motim do título (ele acontece em menos de cinco minutos), somente para que a narrativa passe a focar no julgamento de alguns dos amotinados de volta à Inglaterra. Mesmo considerando que esse motim serviu para que novas regras de conduta fossem baixadas e, portanto, as sequências de retorno ao país natal de Bligh seja importante, é possível ver uma espécie de sofreguidão, de corrida para se cobrir todas as bases antes que o tempo regulamentar se esgote.
Dessa maneira, o terço final da produção acaba quebrando o ritmo do que veio antes, desequilibrando a fluidez da narrativa com recortes demais. A acurácia histórica da fita já não existia de verdade (os fatos históricos comprovados são muito diferentes do que acontece no filme) pelo que teria sido possível encerrar a obra de maneira mais objetiva, mantendo-se a moral da história.
Mesmo com soluços em seu encerramento, O Grande Motim é um magnífico exemplo de uma grande produção dos anos 30, que merece ser conferido pela sua grandiosidade e, claro, pela inesquecível atuação sinistra de Charles Laughton.
O Grande Motim (Mutiny on the Bounty, EUA – 1935)
Direção: Frank Loyd
Roteiro: Talbot Jennings, Jules Furthman, Carey Wilson (baseado em romance de Charles Nordhoff e James Norman Hall)
Elenco: Charles Laughton, Clark Gable, Franchot Tone, Herbert Mundin, Eddie Quillan, Dudley Digges, Donald Crisp, Bill Bambridge
Duração: 132 min.