Home FilmesCríticas Crítica | O Grande Hotel Budapeste

Crítica | O Grande Hotel Budapeste

por Luiz Santiago
3,9K views

Perdido entre planaltos e montanhas do extremo leste europeu, o Grande Hotel Budapeste é, no início do filme de Wes Anderson, a centelha duradoura de um estabelecimento um dia glorioso. O ponto de partida para sua história é, de cara, anticlimático, apresentado de maneira elegante e sem muitas complicações.

Baseado nas obras de Stefan Zweig e escrito por Wes Anderson e Hugo Guinness, o roteiro de O Grande Hotel Budapeste é simples à primeira vista, um texto que facilmente poderia ser classificado como comédia mas que flerta e manipula elementos de outros gêneros, todos refigurados à maneira fantasiosa de Wes Anderson fazer cinema.

Assim como em Moonrise Kigdom, a trama é localizada no passado; bem, nesse caso, em vários momentos do passado: anos 30, 60 e 80, numa plataforma de eventos que brinca com a história dentro da história. O narrador comum aos filmes do diretor está lá e a estrutura literária também. A sequência de abertura tem um livro como ponto de partida, cujo título é homônimo ao do filme. Há um diálogo onipresente do narrador com o público. O texto é dividido em capítulos temáticos e, por mais disfuncional que seja, O Grande Hotel Budapeste é a história sobre uma família, uma família de solitários e neuróticos onde há escolha psicológica de figurinos para cada grupo de indivíduos e uma linha corrente de crescimento, encontros e desencontros entre quase todos. Ora, isso não nos lembra nada?

Em 2001, Wes Anderson lançou Os Excêntricos Tenenbaums, obra cuja história tinha como origem um livro homônimo ao título do filme, figurinos psicologicamente temáticos para cada bloco de atores, estilização plena de um ambiente (a casa, que agora é substituída, em base, pelo hotel) e uma família. Em Tenenbaums, o diretor tomou a realidade como base para dela fazer uma metáfora das relações humanas, especialmente familiares. Em O Grande Hotel Budapeste ele tomou a fantasia para nela fazer uma alegoria da realidade tendo, como foco, as idiossincrasias das pessoas (ou seja, quem, de fato, faz a História).

Tendo já abordado núcleos humanos (e até não humanos, em O Fantástico Sr. Raposo) inseridos nos mais diversos espaços e com motivações pessoais diferentes, vide Pura Adrenalina, Três é Demais e A Vida Marinha com Steve Zissou, Wes Anderson tinha um espaço vago em sua lista temática: ele nunca havia abordado um ambiente ou uma sociedade como focos centrais de um filme. E é isso que ele faz em O Grande Hotel Budapeste. O longa não é sobre o roubo de um quadro ou um concierge estiloso, interpretado brilhantemente por Ralph Fiennes. O longa é a visão fantasiosa do diretor sobre as mudanças de uma sociedade, as transformações de um ambiente, o embate entre o Velho e o Novo mundo, seja lá quais forem os critérios para essa classificação. Vamos olhar mais de perto.
.

Parte um: Mise en abyme

A história começa com um plano aberto no muro de um cemitério. Uma jovem caminha decidida para dentro do local mal cuidado. Nesse ponto já temos o tom da fita. Um mundo belo e cheio de aventuras jaz enterrado em uma cidade de tons neutros e em obras. A garota pára diante do busto de um autor sem nome e abre o seu livro. A sequência seguinte é narrada pelo próprio autor, nos anos 80. Partimos daí para o Hotel Budapeste nos anos 60 e de lá para o mesmo lugar, nos anos 30.

A narrativa em abismo tem como objetivo nos contextualizar a épocas diferentes e cada uma com características próprias. A fotografia de Robert D. Yeoman cria então a indicação de decadência e simplicidade de estilos ao longo dos anos. O mundo “presente” da garota na abertura é plasticamente neutro. O do escritor oitentista, nostálgico. O do Hotel Budapeste nos anos 60 é desbotado, predominantemente laranja e de tons térreos, com os uniformes dos empregados em roxo claro. O do mesmo hotel nos anos 30 é predominantemente vermelho e rosa com tons de bege e uniformes dos empregados em roxo escuro.

A cada parte do filme percebemos que o ambiente se configura mais sem graça e mais prático, pontuado por símbolos. É engraçado que toda a história dos anos 30 é baseada em questões artísticas. O quadro herdado pelo Sr. Gustave tem valor inestimável. Nos quartos do hotel vemos pinturas românticas e impressionistas. Não há símbolos criando valores mas sim identidades a partir de um determinado produto ou padrão artístico. O mundo clássico europeu, por assim dizer, funcionava exatamente da mesma forma. A arte agia suprema a despeito da ganância e violência. Ainda se acreditava em valores ético-morais e na civilização. Então tudo se transformou.

A escolha da guerra como impacto para mudança é uma das provas que O Grande Hotel Budapeste é um filme sobre ambientes e épocas históricas, não exatamente sobre pessoas. Perceba que não só a fotografia indica a mudança de padrão como também os detalhes nos figurinos, cada vez mais simples e descuidados ou cada vez mais clean, padrão também seguido pelos espaços internos. Todo o mergulho na arte e nos valores de um mundo clássico é virado do avesso após o conflito. Seu último suspiro foi a brincadeira do diretor com o labirinto de salas escuras, quase uma forma de “entulhos chiques” que vemos no Museu onde o Sr. Kovacs é perseguido por Jopling e acaba perdendo os dedos e morrendo. O quadro de preço inestimável em uma época é colocado na entrada de um hotel em decadência em outra. Os valores se perdem. O mundo muda.
.

Parte dois: Alegoria

Ao escolher os trabalhos de Stefan Zweig para escrever o roteiro, Anderson tinha em mente usar de uma figura de linguagem que muitas vezes pode parecer vazia porque não é direta. Seu objetivo era manipular uma brincadeira dentro da fantasia com ambientes transformados pela História, mas se isso fosse posto de forma direta, a intenção se perderia. No mais, ele já havia feito o mesmo em Tenenbaums, então, por quê repetir a dose? O Grande Hotel Budapeste foi então configurado como uma alegoria de mundos e sua memória através dos tempos, por isso não se furta em tornar o passado ridículo, inocente, irreal e confuso para contrapô-lo a um presente simplista, direto e estéril.

Esse confronto de tempos não é somente contado pelo roteiro alegórico (por isso aparentemente vazio) mas reafirmado como uma espécie de brincadeira pela trilha sonora de Alexandre Desplat, que completa o que a imagem diz.

Particularmente acredito que este longa seja o mais exigente de Wes Anderson, porque seu todo não será apreendido unicamente pelo texto. Mais do que nunca sua estilização conta ou ajuda a contar uma grande história, não está lá apenas para contemplação embasbacada e muda. A música, do mesmo modo, nos lembra de que afinal de contas estamos presenciando eventos em um mundo onde escritores tinham febre de inspiração e uma gripe polonesa matava milhões de pessoas. Que mundo é esse?

Ora, esse mundo só pode ser um lugar de constituição fabular, róseo, com um garoto de recados com bigodinho falso, assassino com arcada dentária vampírica ao contrário e associação de amigos dispostos a fazer qualquer coisa um pelo outro. O quê? Isso lhe parece ridículo? E se alguém lhe dissesse que esse mundo já existiu e que um dia as coisas foram assim? Você, leitor, já contou sobre o seu passado para alguém? Já percebeu que nós tendemos a ver o passado sempre mais harmonioso, bonito, convidativo e um pouco fantástico demais para ser verdade? Por quê, na maioria das vezes, esse passado mesmo em suas partes negativas parece sempre ter mais estilo e identidade que o presente?

Em O Grande Hotel Budapeste Wes Anderson encarna um Jacques Tati, um Pierre Étaix, um Totò para tentar aludir a uma resposta e então brinca com a memória, traz à tona esse calor de um passado tão belo e tão simples que para alguém acostumado à densa austeridade do presente, parece ser uma rasa história surrealista.
.

Epílogo

Quando estereótipos estéticos, narrativos e formais de um diretor são agrupados em um longa para fazer mímica da História, seu resultado é um produto que se quer distante do real, se inclina ao simples e não diz claramente o que quer. Assim, como encontrar justificativa para uma cena em preto e branco justamente na “segunda guerra”? Por quê é Zero e não o Sr. Gustave que faz a segunda pergunta do por quê o trem pára no campo de cevada? Por quê todos os exteriores se passam em tons azulados ou branco e permeados por neve? Em uma escrupulosa direção Wes Anderson nos mostra em tudo isso flashes estilizados da História do final do século XIX e do século XX, refletindo em escalas e personagens nada naturais o seu exercício de registro sobre a passagem do tempo vista com os olhos de um cineasta brincando de ser dramaturgo.

Dândis, ricos esnobes, visões de sexo e sexualidade, bizarrice, amor e desamor perpassam o tempo e influenciam pessoas e personagens. Cada indivíduo e cada tempo tem uma história para contar e lega ao mundo uma história. Uma história que no final das contas será enterrada junto com seus atores e escritores (a cena final do nosso filme) em um cemitério sem graça e lida em livros finos como se fossem eventos de isopor de uma época onde tudo era bonito, colorido e bizarro demais pra ser verdade. Exatamente como será a memória do que hoje somos em pelo menos um século. Exatamente como as caricaturas vivas de Wes Anderson em O Grande Hotel Budapeste.

O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel) – EUA, 2014
Direção: Wes Anderson
Roteiro: Wes Anderson, Hugo Guinness (inspirado nos trabalhos de Stefan Zweig)
Elenco: Ralph Fiennes, F. Murray Abraham, Mathieu Amalric, Adrien Brody, Willem Dafoe, Jeff Goldblum, Harvey Keitel, Jude Law, Bill Murray, Edward Norton, Saoirse Ronan, Jason Schwartzman, Léa Seydoux, Tilda Swinton, Tom Wilkinson, Owen Wilson, Tony Revolori
Duração: 100 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais