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Crítica | O Formidável (2017)

Rindo dos pontos cegos de um cineasta de visão.

por Rafael Lima
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Jean-Luc Godard, em seus mais de 60 anos de carreira, contribuiu imensamente para o cinema, sendo um dos fundadores da Nouvelle Vague, movimento que impactou a forma de se pensar as convenções da linguagem audiovisual. Mas Godard é conhecido por outros fatores além da importância de sua obra. O cineasta ficou famoso por possuir um gênio difícil, opiniões políticas fortes, e por ter uma visão radical sobre o papel social do cinema, não tendo qualquer flexibilidade com quem tinha uma visão diferente da dele. Há quem admirasse a ousadia do diretor em dizer o que pensava; outros achavam que, apesar de defender boas pautas, Godard era “um escroto pedante” na forma de se colocar. Essa dualidade é o que o torna uma figura fascinante, e qualquer tentativa de trazer um recorte sobre a vida dele que se limitasse a ser uma obra chapa branca, seria um desserviço ao mestre francês. Felizmente, não é o caso de O Formidável, de Michel Hazanavicius, que retrata a relação de Godard com a sua segunda esposa, Anne Wiazemsky, e a sua radicalização política.

Na trama, após se casar com Anne Wiazemsky (Stacy Martin), uma atriz muito mais jovem, o diretor Jean Luc-Godard (Louis Garrel) lança o seu mais novo filme, A Chinesa (1967), fortemente influenciado pela corrente política maoísta. Mas após o filme ser mal recebido pela crítica e pelos próprios maoístas, Godard entra em uma crise existencial que o leva a questionar a sua própria carreira e visão de cinema, e a se envolver com as greves de maio de 1968 e os movimentos políticos socialistas, enquanto o seu casamento com Anne é testado.

Escrito por Hazanavicius, baseado no livro de memórias de Anne Wiazemsky, O Formidável faz um recorte da vida de Godard e Wiazemsky entre 1967 e 1970. Assumindo ares tragicómico, o roteiro constrói bem a crise de identidade do protagonista, especialmente no que diz respeito ao papel político de sua arte. A recepção de A Chinesa, e as críticas que sofre do movimento estudantil em suas declarações abalam o senso de utilidade do diretor. Isso faz com que ele sinta que suas obras mais famosas sejam filmes inferiores e não condizentes com o que o cinema deve ser. Mas narrativamente, este filme é menos sobre cinema e mais sobre as neuroses e obsessões de um homem. O roteiro não está interessado no brilhantismo de Godard, tratando isso como um ponto dado desde o início da película. O seu interesse está em como Godard via o mundo no fim dos anos 60, e em como essa visão afetava as suas relações.

Como a maioria dos protagonistas das tragicomédias, Godard é retratado como sendo um pouco patético e cheio de contradições. Vemos o cineasta como alguém engajado politicamente, mas incapaz de definir o que é fascismo; um cineasta que fala contra a estrutura hierárquica do cinema, mas que tem dificuldade em bancar a própria revolução, ao não conseguir renunciar à autoridade de diretor em uma produção de direção coletiva. O filme mostra Godard como sendo ciumento com a esposa; autoritário com os amigos; e míope em suas crenças. Ainda assim, o longa evita fazer do cineasta uma figura odiosa, mesmo em controvérsias. Muito disso se deve a Louis Garrel, que faz do diretor alguém carismático, mas guiado por suas inseguranças, um homem que parece o tempo todo angustiado pelos outros não entenderem o que ele está dizendo. E o roteiro contribui com tal retrato ao fazer de Godard alguém que não lida bem com as pessoas, e que se expressa melhor com uma câmera do que com palavras em interações diretas.

Apesar de uma construção rica de seu protagonista, o roteiro não é tão competente no trato de seu principal eixo dramático; a relação entre Godard e Anne Wiazemsky. Ponto dado, o filme deixa claro como e porque o casamento deles acabou. Anne se apaixonou pelo Godard de seus primeiros filmes, e à medida que o diretor rejeita essa parte de si, consequentemente também rejeita o amor dela (e o machismo dele decididamente não ajudou). Mas ainda que Wiazemsky funcione como o ponto de vista do público, o filme se lembra do casamento apenas ocasionalmente, espalhando situações anedóticas aqui e ali. Stacy Martin entrega uma atuação leve e sensível como uma jovem que começa o filme fascinada pelo marido, e luta por boa parte da obra para preservar esse encantamento; mas não há como negar que Anne só passa a ser trabalhada como personagem no terço final. Isso não seria um problema, se o filme assumisse que a jovem estava lá como testemunha para a jornada de Godard, mas ao fazer da crise do casal um ponto vital do 3º ato, a falta de desenvolvimento da personagem se faz sentir, enfraquecendo o peso do desfecho.

Mas se a narrativa não está muito disposta em glorificar a pessoa de Godard, a direção está plenamente disposta em celebrar a obra e a estética do mestre franco-suíço, especialmente a serviço do humor. E faz todo o sentido que Hazanavicius brinque com a linguagem de Godard e a use em tom jocoso, afinal foi o que ele fez com o cinema-mudo em O Artista (2011) e com o Eurospy nos filmes da série Agente 117. Algumas dessas referências audiovisuais funcionam muito bem, vide uma passagem de negativo invertido, ou outra envolvendo trilha sonora em Looping. Por outro lado, as piadas de caráter metalinguístico que surgem ao longo da projeção a partir do texto, como um comentário sobre atores no começo do filme, ou um debate sobre nudez gratuita no cinema com os dois atores nus em cena, parecem se esforçar demais para dar aquela piscadinha esperta para o público, não funcionando como pastiche do característico texto metalinguístico que Godard costumava empregar em algumas de suas obras mais célebres.

O Formidável merece créditos pela coragem de humanizar a figura de um ícone do cinema como Jean Luc-Godard, paradoxalmente fazendo isso ao tirar sarro de algumas de suas características mais polêmicas de forma quase caricatural. Há quem possa acusar o filme de não ver os nuances e intenções do discurso de Godard, mas eu diria que a proposta nunca foi se aprofundar nas visões políticas do cineasta, e sim refletir sobre a forma como ele lidava com elas. Por outro lado, ao tentar emular os relacionamentos apaixonados e disfuncionais vistos em clássicos como Acossado (1960) e O Desprezo (1963) através do casamento de Godard e Anne Wiazemsky, o filme de Hazanavicius não consegue realmente nos fazer sentir pelo casal, uma emoção que o Godard representado aqui poderia até desaprovar, mas que o Godard real sempre foi capaz de despertar, mesmo que de forma subversiva. Pelo menos é o tipo de contradição que tem tudo a ver com Jean Luc-Godard.

O Formidável (Le Redoutable) – França, 2017
Direção: Michel Hazanavicius
Roteiro: Michel Hazanavicius (baseado nas memórias de Anne Wiazemsky)
Elenco: Louis Garrel, Stacy Martin, Bérénice Bejo, Micha Lescot, Grégory Gadebois, Félix Kysyl, Arthur Orcier, Marc Fraize, Guido Caprino, Emmanuele Aita, Matteo Martari, Philippe Girard, Romain Goupil, Jean-Pierre Mocky, Quentin Dolmaire
Duração: 107 Minutos

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