Ver um filme de Woody Allen é como retornar a uma antiga casa. São tantos filmes do diretor (49, com este!) e são tantas e tantas as suas nuances estilísticas, que desde a abertura da obra nos sentimentos em um terreno que conhecemos muitíssimo bem e onde conseguimos, ou procuramos encontrar, algum tipo de refúgio. Se olharmos para a filmografia (não tão) recente de Allen, constataremos que sua última grande obra foi Blue Jasmine (2013), portanto, há quase 10 anos em relação ao lançamento da presente fita no Brasil, em janeiro de 2022. A partir de 2014, com a retomada midiática das denúncias feitas contra ele por sua filha Dylan Farrow, o cineasta entrou em um progressivo isolamento, com mais dificuldade para financiar projetos e, pela primeira vez em sua carreira, com dificuldade para escalar atores e atrizes do “Time A” para suas obras. Além disso, os filmes de Magia ao Luar em diante são, em essência, preguiçosos, assinados por alguém que obviamente sabe muito o que está fazendo, mas que parece não ter mais nenhuma intenção de sair da zona de conforto. E sim, eu concordo totalmente com a afirmação de que “Woody Allen não tem mais nada a provar para ninguém“, quando se fala sobre carreiro. Isso é um fato. Mas daí até o mais puro comodismo vindo de alguém como ele, é outra história.
O problema é que são filmes cada vez mais indulgentes com seus elementos recorrentes, mais fechados nessa teia referencial tão conhecida do Universo woodyano e que almejamos que ultrapasse certa linha dramática — como fez inúmeras vezes no passado –, mas isso, infelizmente, não vem acontecendo. O Festival do Amor (2020) é daquelas obras que tem um gosto nostálgico das boas comédias agridoces típicas do diretor, com suas reflexões sobre a vida, sobre a morte e sobre os muitos nós que o amor dá em nossos corações, mentes e vidas. Todos os ingredientes de um “filme de Woody Allen” estão aqui de maneira farta, mas expostos no modo piloto automático, com um narrador que é majoritariamente sem graça, com uma montagem que não consegue criar nada visualmente muito interessante e nem manter uma sensação de ritmo elogiável. Ou seja, um filme de um ótimo diretor que por bem pouco conseguiu ultrapassar a linha da mediocridade.
Wallace Shawn (antigo colaborador do cineasta) dá vida ao protagonista da obra, Mort Rifkin, que vai com sua esposa Sue (Gina Gershon) para a Espanha, por ocasião do Festival de San Sebastián. O filme é um longo flashback (narrativamente, uma das poucas coisas muitíssimo bem feitas da obra, tanto na partida para o passado quanto no retorno ao presente) e narra a estadia de Sue, que trabalha representando um cliente no Festival, o jovem diretor Philippe (Louis Garrel) e Mort, que vai acompanhar a esposa, mas não tem muito o que fazer. Como é de se esperar, discussões de casal e solilóquios sobre a existência fazem parte da apresentação dessa atmosfera cênica, até que surge algo que apimenta um tantinho o filme: o interesse do casal por outras pessoas e as homenagens de Allen aos grandes mestres europeus.
Considerando que estamos em um Festival de Cinema e que o título original do filme é Rifkin’s Festival (O Festival de Rifkin), faz total sentido esse tipo de abordagem. Infelizmente não são todas as homenagens/pastiches que funcionam, mas a escolha para elas é bastante lógica. A brincadeira de sonhos, memórias e pequenas alucinações cinéfilas começa com uma cena recriada de Cidadão Kane (1941) e termina com a recriação da icônica cena do jogo de xadrez com a Morte, vista em O Sétimo Selo (1957). Cada um desses momentos serve para discutir ou expandir alguma angústia ou ideia do protagonista, caminhando até para algum tipo de comentário simbólico sobre sua carreira ou atitudes na vida, como faz o pastiche de 8½, por exemplo, que junto com o de Cidadão Kane e o de O Anjo Exterminador (1962) são os melhores da obra. As outras referências encontradas aqui são dos filmes Morangos Silvestres (1957), Acossado (1960), Jules e Jim (1962), Um Homem, uma Mulher (1966) e Persona (1966).
Uma coisa que eu nunca pensei que teria é a fotografia do mestre Vittorio Storaro parecendo exagerada, mergulhando os personagens em uma tonalidade quente que, pela repetição, faz a gente estranhar. O tom alaranjado que ilumina a sala do analista, no início do filme, é belíssimo. Mas quando ele reaparece num estranho crepúsculo do qual a gente só consegue contemplar a coloração cobrindo o casal protagonista, no quarto do hotel, já não é mais algo atrativo. À parte esses momentos, o trabalho do diretor de fotografia é sólido e consegue dar força ao sonho cinematográfico pretendido pelo diretor. Senti falta de mais contraste nas cenas em preto e branco, mas também não é nada que deponha contra a escolha, já que se trata de uma imagem onírica de Mort para esses grandes filmes.
Visualmente belo e narrativamente pobre, dentro daquela esfera de “mais do mesmo”, O Festival do Amor consegue, pelo menos, nos puxar para a representação da vida na tela do cinema. Fraco ou não, o cinema de Woody Allen nunca deixou de cumprir o seu papel de nos retirar da realidade para fazer-nos revisá-la, sem muita culpa, através de lentes neuróticas e ansiosas. É um exercício confortável, mexendo com coisas caras a todos nós; com inseguranças e desejos tão presentes em nossas vidas, que aqui e ali estamos nos colocando no lugar de algum personagem e vivendo aquela situação, aquela dor, aquela busca por respostas. E nesse caso específico há a abertura das portas da metalinguagem, fazendo a viagem ser ainda mais gostosa, apesar de todas as suas falhas.
O Festival do Amor (Rifkin’s Festival) — Espanha, EUA, Itália, 2020
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Wallace Shawn, Michael Garvey, Damian Chapa, Bobby Slayton, Gina Gershon, Louis Garrel, Stephanie Figueira, Luz Cipriota, Godeliv Van den Brandt, Manu Fullola, Richard Kind, Nathalie Poza, Cameron Hunter, Itziar Castro, Isabel García Lorca, Richard Carlow, Yuri D. Brown, Carmen Salta, Enrique Arce, Christoph Waltz
Duração: 88 min.