Os clássicos nunca morrem e constantemente são readaptados para as plateias contemporâneas. Depois de assumir a retomada da franquia Halloween, criada por John Carpenter e Debra Hill em 1978, transformando o universo de Michael Myers e Laurie Strode em uma nova trilogia, David Gordon Green, aqui responsável pela direção e roteiro, traz para o público atual um clássico ainda mais poderoso: O Exorcista, filme de 1973, tradução do romance homônimo de William Peter Blatty para o cinema, um dos raros casos de narrativas do segmento horror a receber indicações ao Oscar e Globo de Ouro. Fenômeno de bilheteria e clássico intocável para muitos admiradores, a produção possui legado e impacto cultural extenso, ainda hoje sendo tema para debates de análise fílmica, interpretações acadêmicas e do senso comum, bem como assunto para curiosos e sensacionalistas, haja vista os mistérios que envolvem os seus bastidores, considerado amaldiçoado. Tendo o selo da Blumhouse para se ancorar, o corajoso cineasta assume aqui a tarefa de trazer personagens icônicos, reestabelecer a história cinquenta anos depois e assegurar que a proposta de sequência direta seja convincente. A pergunta, desde as primeiras divulgações, foi unanime: será que ele consegue?
Como estrutura narrativa, o filme não deixa espaço para apontamentos negativos. A equipe do cineasta David Gordon Green cumpre todos os requisitos para nos fazer imergir na atmosfera de uma trama inserida no universo dos exorcismos. A direção de fotografia assinada por Michael Simmonds estabelece o clima adequado, com luz, ângulos, quadros e movimentação pelos espaços para colocar os espectadores diante do sofrimento dos personagens, trabalho conduzido com eficiência, tendo os ambientes do design de produção de Brandon Tonner-Connoly para captar. Este setor, responsável pela concepção dos cenários, da direção de arte e de outros elementos presentes em cena também assume com assertividade as suas tarefas, incluindo os símbolos esperados de uma trama do tipo, além de fazer um panorama de referências visuais ao clássico de 1973. Agora, sem a necessidade de ter alguém para ingerir ovos crus e fumar insanamente para alcançar o tom de voz demoníaco, haja vista todos os avanços tecnológicos no âmbito do design de som, temos bons efeitos dentro desta seara por aqui, missão honrada por Rich Bologna. E, talvez a tarefa mais desafiadora tenha sido para a dupla David Wingo e Amman Abbasi, compositores da textura percussiva. O envolvente tema principal Tubular Bells ganhou uma variação e as demais faixas conseguem produzir a sonoridade ideal para acompanhar as cenas dirigidas por Green, mas não é um trabalho para se tornar referência de trilha sonora.
Mas, como estética apenas não resolve o seu desafio de contar uma história, foi preciso ajuda para a composição do roteiro. Além de Green, o texto de O Exorcista: O Devoto foi escrito com a dupla formada com Peter Sattler. O resultado é um filme de 111 minutos que traz de volta um ponto nevrálgico da trama de William Friedkin: Chris MacNeil, interpretada pela veterana Ellen Burstyn. Sendo um filme arriscado, parte de um universo muito respeitado, David Gordon Green foi chegando aos poucos na atriz, inicialmente reticente em voltar ao universo. Muitos convites já tinham sido realizados ao longo dos anos e a experiente intérprete não esteve interessada em momento algum para um retorno. No entanto, tudo pode ser conquistado com uma boa negociação. E, aos poucos, entre conversas, explicações e um roteiro em mãos, o diretor conseguiu o que precisava. Tendo um nome de peso no elenco para alavancar a sua produção, era preciso honrar o universo adentrado. A missão é cumprida com qualidade, há boas intenções, mas talvez pelo excesso de narrativas sobre exorcismo desde 1973, ficou difícil para os realizadores conseguirem o seu diferencial. O filme, no entanto, consegue ser melhor que qualquer coisa sobre exorcismo realizada nos últimos anos. E ainda traz um manancial de referências que não são aleatórias, mas devidamente encaixadas com a fluidez da narrativa.
No desenvolvimento de O Exorcista: O Devoto, Chris MacNeil se tornou uma especialista no tema que atormentou o seu passado. Com base nos acontecimentos com a sua filha Regan (Linda Blair), a atriz resolveu escrever um livro onde documenta o exorcismo realizado por dois padres com a sua filha, dentro de sua casa, experiência dolorosa que se desdobrou no presente, pois ao considerar que foi demasiadamente exposta midiaticamente, a jovem se afastou completamente de sua mãe. Este é um mote, por sinal, que estrutura a primeira temporada da série televisiva inspirada neste universo, protagonizada por Geena Davis. As forças demoníacas, mais uma vez em ação, fazem Victor Fielding (Leslie Odom Jr.), pai da pequena Angela (Lidya Jewett), procurar por Chris para pedir ajuda. Ele cria a menina sozinha depois que a mãe da garota morreu num terremoto no Haiti. Para piorar, não apenas a sua filha, mas a sua amiga Katherine (Olivia Marcum), também apresenta sinais de possessão. O estado em questão é estabelecido depois que ambas sofrem uma tentativa de sequestro e ficam três dias desaparecidas. Ao voltar de uma área florestal sem lembranças do que teria acontecido, as duas garotas começam a se comportar estranhamente e sem delongas, o horror é exposto em cena para massacrar todos os envolvidos e colocar os personagens diante de suas catarses mais intensas.
Ao finalizar este que pretende ser o primeiro capítulo de uma trilogia, O Exorcista: O Devoto permite questionar qual o lugar do exorcismo no contemporâneo. Indo além do entretenimento proposto por histórias deste tipo, geralmente a colocar pessoas comuns em situações desesperadoras e extraordinárias, refletir as práticas de exorcismo na atualidade é pensar o lugar da religião e de suas instituições em nossa sociedade. Em 2021, numa igreja pentecostal da Califórnia, uma criança foi morta após ser asfixiada durante um ritual de suposta possessão. No ano seguinte, três familiares da vítima foram acusados judicialmente de abuso infantil. Algum tempo após o lançamento de O Exorcista, a desidratação e a desnutrição aniquilaram a vida da alemã Annelise Mitchell, jovem considerada possuída, base para o desenvolvimento do ótimo O Exorcismo de Emily Rose. Temática que traz discussões sobre religião e ciência, a ação dos exorcistas tem crescido exponencialmente nos últimos anos, mesmo com o mundo tão fincado na perspectiva tecnológica e o abandono da fé por muitas pessoas. Como explicar este fenômeno? É outro questionamento que vem à tona depois que a sessão termina e as luzes do cinema se acendem. Alguns padres, mais recentes, chegaram a dizer que não acreditam no ritual.
Seria, então, a ficção, o lugar para a manutenção deste receio diante das forças sobrenaturais? É algo para pensarmos no contexto de lançamento de O Exorcista: O Devoto. Ritual presente em diversas religiões, mas amalgamado em nosso imaginário na relação constante com o catolicismo, esta prática foi repensada em meados do século XX e considerada fora de cogitação por uma igreja que tentava se modernizar para não perder os seus fieis. Mas, na “contracultura” deste processo, livros e filmes sobre ocultismo cresciam vertiginosamente. Nas “comunidades imaginadas” catolicistas, uma parcela de religiosos acreditou que esta tentativa de modernização deixou as pessoas mais vulneráveis aos demônios. Entre idas e vindas diante do posicionamento do Vaticano, uma coisa é certa: alguns abominam exorcismos, considerando a prática anacrônica e não dialogada com os avanços científicos que explicam melhor o comportamento humano, algo entendido pelo mito nas eras passadas, quando a sociedade ainda não tinha avançado no quesito pensamento. Por outro lado, diante dos medos e das situações inexplicáveis até mesmo pelo discurso científico que geralmente sabe de todas as coisas, buscar ajuda se tornou alternativa para alguns que precisam de mais conforto para lidar com aquilo que não conseguem entender.
Em 2014, o Vaticano finalmente aprovou a Associação Internacional de Exorcistas, um fato curioso que demonstra também as questões políticas que envolvem o tópico temático, pois mesmo se modernizando e buscando outras explicações para fenômenos complexos, o catolicismo e as demais instituições religiosas adeptas ao exorcismo não querem perder os seus fieis, e, consequentemente, o posicionamento social e suas respectivas receitas. E mais, voltando para as questões ficcionais, segundo relatos da própria igreja, com o advento do filme de 1973, o tema ganhou destaque e um amontoado de pessoas buscou no exorcismo uma prática para resolução de problemas que muitas vezes (ou nenhuma delas) esteve associado ao estabelecimento de forças demoníacas em suas vidas. É uma arrepiante e interessante constatação do poder do cinema em nossas existências cotidianas, reforço também para aquilo que chamo de legado e impacto cultural de O Exorcista. O exorcismo, caro leitor, é uma indústria poderosa. Basta saber, agora, se o lançamento desta sequência direta vai preencher as agendas dos padres devidamente formados para realização de exorcismos e, concomitantemente, aumentar as vendas de crucifixos.
E sim, os realizadores conseguem estabelecer um bom filme. Nunca vai chegar aos pés do ponto de partida, obviamente, devido ao culto que gravita em torno do clássico, mas seria leviano desconsiderar as qualidades desta sequência.
O Exorcista: O Devoto (The Exorcist: Believe– EUA/2023)
Direção: David Gordon Green
Roteiro: David Gordon Green, Peter Sattler
Elenco: Ellen Burstyn, Jennifer Nettles, Ann Dowd, Olivia O’Neill, Leslie Odom Jr., Lidya Jewett, Olivia Marcum
Duração: 117 min