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Crítica | O Exorcismo (2024)

Com uma proposta metalinguística envolvente, filme de exorcismo se perde na execução.

por Leonardo Campos
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Um filme que desejei gostar. Ao contemplar o pôster na saída de uma sessão de cinema recente, vislumbrei a publicidade e pensei: “nossa, que legal, mais um filme mainstream de exorcistas para analisar”. Mesmo quando são irregulares, as narrativas com possessão demoníaca e exorcismo me fascinam pelo fato de ajudar na catalogação e comprovação da pertinência do livro A Persistência da Memória, composição de críticas de cinema ainda inédita, textos que reforçam as peculiaridades e evoluções de tramas envolvendo tubarões, psicopatas mascarados (slasher) e exorcismos, três tópicos constantes na seara dos filmes de terror. Eis que o dia de conferir o material trouxe momentos empolgantes de envolvimento, em especial, por sua proposta metalinguística, envolvendo bastidores do cinema e relação de homenagem com o clássico O Exorcista, dirigido por William Friedkin e escrito por William Peter Blatty, dramaturgo que se inspirou no próprio romance para tecer o roteiro de uma história que reafirma o seu legado e impacto cultural ao longo dos 97 minutos de O Exorcismo, assumido pelo cineasta Joshua John Miller, também coautor, numa parceria com M. A. Fortin. Todos os envolvidos tinham tudo, mas todos os elementos, caro leitor, para fazer uma grande retomada nesse que é um subgênero profícuo do terreno criativo no cinema, mas ao passo que a narrativa avança dos seus primeiros momentos inspiradores para um festival de descuido mais adiante, a impressão que se tem é que o filme, tal como a “história dentro da história”, está tomada por uma terrível maldição.

A cada cena de O Exorcismo, pensava comigo mesmo: “não, pera, eles vão ajustar isso logo mais”. Ledo engano. A trama evolui num ritmo absurdamente desorganizado, não permitindo sequer os excessos dos efeitos visuais da equipe gerenciada por Nico Del Giudice para, ao menos, nos animar e ter a sensação de que fomos ludibriados pelo viés dramático, mas tivemos momentos de tensão e imagens impactantes. Esqueça. Não acontece. Tive que me conformar. Temos aqui um exemplar pontual de boas ideias desperdiçadas, edição comprometedora e uma série de outros equívocos que nos permitem questionar como a junção de tantos profissionais competentes estabeleceram numerosas atrocidades artísticas numa história que nem sequer é longa demais para se perder. Um demônio abaixo da média, com mitologia fragilizada, praticamente nula, atores suando ao máximo para entregar cenas que não ajudam a manter a dignidade de seus bons desempenhos dramáticos e um punhado de subtramas que não permitem empatia dos espectadores para a catarse desejável nesse tipo de enredo.

Feito esse panorama, vamos ao enredo. Há um filme de terror sobre exorcismo sendo gravado. O primeiro ator a interpretar o personagem responsável por expulsar a entidade do filme dentro do filme lê as suas linhas de diálogo mais intensas e visita o set de filmagens para ensaiar sozinho. Ele quer sentir a vibração de seu papel, em busca de entregar o melhor. Mas algo demoníaco além da ficção ceifa violentamente a sua vida. E fará isso com muitos outros que desejam fazer parte dessa icônica narrativa ficcional que só apresenta situações trágicas, uma após a outra. A sua morte, no entanto, abre oportunidades. É quando Anthony Miller, interpretado por Russell Crowe, recentemente em O Exorcista do Papa, trama de proposta dramática correlata, é convidado para protagonizar o filme que se passa em Georgetown. Ele é um ator que teve os seus tempos áureos no cinema, mas perdeu espaço por diversas tragédias pessoais. Esposa morreu de câncer, a filha traumatizada se afastou e sua existência se tornou um mergulho em garrafas de bebidas alcoólicas e septo danificado pelo uso de cocaína e outras substâncias.

Assim, ele vê com esperança esse retorno ao cinema. O diretor deixa claro que foi complicado convencer os produtores para a contratação. Pressionado, Tony, como é chamado por sua filha, interpretada por Ryan Simpkins, começa o trabalho tentando fazer o melhor que pode. Há, no entanto, uma penumbra macabra que o impede de prosperar. A sensação de recaída paira na atmosfera e tudo parece dar errado no desenvolvimento do filme. A entidade, Moloch, parece ter uma conexão com o passado do arruinado ator, mas qualquer sensação impactante é minada pela montagem de flashbacks descuidados, nada orgânicos e prejudiciais para o ritmo da trama. Os espaços por onde as figuras ficcionais circulam cumprem o papel de conectar o espectador a qualquer sensação de horror mais que qualquer acontecimento em si do roteiro. É uma das coisas mais estranhas que já pude contemplar em quase duas décadas de crítica cinematográfica. O design de produção de Michael Perry, em especial, na arte e nos adereços de sua equipe, assumidos por Jason Bistarkey, são muito eficientes na construção de uma boa atmosfera, mas falta um texto melhor para o pacto com nós, espectadores, satisfeitos com a direção de fotografia eficiente de Simon Duggan, mas entediados com o tom morno das manifestações sobrenaturais em O Exorcismo.

Ah, e por acaso, não me cancelem, mas ainda prefiro O Exorcista do Papa a essa equivocada jornada que, por sinal, não é uma continuação, tampouco parte de uma franquia ou universo cinematográfico. São produções independentes entre si, conectadas apenas pelo mesmo tempo, semelhantes em suas irregularidades. Sam Worthington, Chloe BaileyAdam Goldberg e David Hyde Pierce são coadjuvantes de primeira linha desperdiçados, nessa história sobre perda da fé e traumas do passado. Mesmo tão irregular, afinal, o cinema não é só reflexão sobre obras-primas, me fez refletir sobre o lugar do exorcismo e o interesse pelo tema numa sociedade tão avançada no âmbito da tecnologia e do discurso científico. E, antes de refletir sobre isso, para o desfecho da análise, devo dizer que além dos mencionados aspectos visuais, O Exorcismo tem outros setores que trabalham com assertividade: no design de som e nos efeitos especiais, Victor Ray e William Purcell supervisionam bons trabalhos. O mesmo nós não podemos dizer da textura percussiva assinada por Danny Bensi e Saunder Jurriaans, uma trilha sonora apenas “ideal”, nada memorável.

No cenário atual, a prática do exorcismo enfrenta desafios significativos à medida que as ideias e práticas religiosas são cada vez mais confrontadas pela “luz” da ciência. A evolução da tecnologia e a disseminação do conhecimento científico levantam questionamentos sobre a validez do exorcismo em um mundo onde a racionalidade e a lógica muitas vezes parecem guiar as decisões e crenças das pessoas. Filmes como O Exorcismo de Emily Rose, por exemplo, trouxeram esse debate devidamente delineado. A fé católica, em particular, encontra-se em um terreno complexo, equilibrando tradições antigas com a compreensão moderna do mundo. Por um lado, a ficção nos apresenta padres inicialmente céticos, como um dos protagonistas para a versão em série de O Exorcista. Por outro, o exorcismo é uma prática profundamente enraizada na fé católica e em muitas outras tradições religiosas. William Friedkin levou o assunto às últimas consequências no peculiar documentário O Diabo e o Padre Amorth. Para os que acreditam, o exorcismo representa uma forma de lidar com forças espirituais e entidades negativas que podem afetar a vida das pessoas. É visto como um ato de purificação e proteção espiritual, uma maneira de restaurar o equilíbrio e a harmonia nas vidas daqueles que buscam ajuda. Nesse sentido, o exorcismo continua a desempenhar um papel significativo para muitos fiéis, oferecendo uma resposta espiritual a problemas que transcendem o mundo físico.

Por outro lado, a ciência e a tecnologia desafiam a compreensão tradicional do exorcismo. Com o avanço do conhecimento científico, muitos fenômenos anteriormente atribuídos a causas sobrenaturais têm sido explicados de maneira racional. Doenças mentais, distúrbios psicológicos e condições médicas agora são compreendidos de forma mais abrangente, o que levanta questionamentos sobre a necessidade e eficácia do exorcismo como prática de cura. A ênfase na evidência empírica e na análise crítica muitas vezes coloca em xeque as crenças e práticas religiosas que não podem ser comprovadas empiricamente. Diante dessas tensões entre fé, ciência e tecnologia, surge a necessidade de um diálogo significativo e respeitoso sobre o lugar do exorcismo em nossa sociedade atual. É um assunto que rende bastante e, convenhamos, sou esperançoso: ainda espero ver um filme de exorcismo que resgate a atmosfera do clássico de 1973 e demonstre que diante de um bom argumento, a execução do roteiro possa se apresentar digna do surgimento de mais um clássico. Agora é só aguardar.

Você, caro leitor, acredita em exorcismos? E que filmes de exorcismo ainda funcionam?

O Exorcismo (The Exorcismo/EUA, 2024)
Direção:  Joshua John Miller
Roteiro: M.A. Fortin e Joshua John Miller
Elenco: Russell Crowe, Samantha Mathis, Sam Worthington, Adam, David Hyde Pierce, Chloe Bailey
Duração: 97 min.

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