Há filmes que não são realizados para serem vistos por todo mundo pelo simples motivo de que uma boa parte do público irá se deparar com algo que não entende, e como resultado, destruirá o objeto visto só porque não foi capaz de decifrá-lo, uma postura já prevista por Ortega y Gasset em seu livro A Desumanização da Arte.
O caso dos filmes políticos é um bom exemplo dessa categoria de obras que para muitas pessoas é um desfile de símbolos numa passarela de enigmas. O grande problema é que nesse ponto entramos naquele território em que algumas pessoas que vão ao cinema acreditam que todo filme deve ser fácil e ralo, com citações explicadas e narrativa livre de conceitos incomuns, erudição e complexidade. À parte a questão subjetiva, esses espectadores jamais sabem explicar os motivos pelos quais não gostaram do filme, sinal maior de que não houve compreensão alguma, daí o desgosto em relação a obras que fogem daquele terreno que lhes é familiar, o terreno do pleno e vazio espetáculo cinematográfico.
O Exercício do Poder (2011), filme escrito e dirigido por Pierre Schöller é um bom representante da ala de obras odiadas por maus entendedores. A película acompanha a via crucis do Ministro dos Transportes da França em sua luta contra a privatização das ferrovias e os jogos políticos que se armam em torno dele desde as ordens do presidente da República até as ambições do Secretário de Estado. A burocracia e os arcaicos meios legais confundem-se com as necessidades mais urgentes do país, e mesmo para se tornarem legítimas, precisam passar pelo crivo de decisões feitas a portas fechadas por um grupo pequeno de pessoas. O resultado que virá para a população será uma ordem de ação com apenas três palavras: neutralizar, neutralizar, neutralizar.
A abertura da obra é realizada através de um sonho. Desde esse momento, percebemos o brilhantismo da música do estreante Philippe Schoeller e da fotografia do veterano Julien Hirsh, que mais uma vez, apresenta um trabalho delicado e muito bem orquestrado, trazendo colorações metálicas e duras para os grandes planos de forte representação política, e luzes difusas e até aconchegantes, quentes, em interiores em festa ou reuniões políticas de máxima importância. O departamento de arte adota a linha do bom gosto burguês e capitalista contemporâneo num amálgama de estilos artísticos de décor que precisa adequar-se ao mundo objetivo numa arquitetura de não data desse século, mas cada escritório de um ministério ou cada residência mostrada acaba tendo o seu estilo próprio, que de maneira acertada, ajudam a definir a personalidade dos seus ocupantes.
No sonho de abertura, Bertran Saint-Jean, o Ministro dos Transportes, sonha com indivíduos encapuzados arrumando seu escritório no Ministério como num ritual macabro. Uma mulher nua entra pela porta, lentamente. Sua beleza contrasta com a rudeza e feiura do crocodilo que a espreita em um canto da sala. Eles se olham, e de alguma forma, se comunicam. Estranhamente, há um quê de conotação sexual nessa sequência. É então que o crocodilo abre a boca e a mulher voluntariamente se projeta para dentro do animal, sendo engolida por ele.
Poderíamos aqui evocar a teoria lacaniana da “boca do crocodilo”, que traz à tona, em linhas gerais, o ponto de independência do filho em relação à sua mãe. A escolha é sempre do filho: ou ele se torna independente do seio de sua genitora, reconhecendo sua incompletude e lidando com ela, ou é engolido pela “boca do jacaré”, tornando-se dependente e sem unidade. Por outro lado, é lícito que citemos o símbolo de força, voracidade, duplicidade e hipocrisia que o jacaré representa. Unindo os dois lados da moeda, temos no sonho de abertura do filme, uma metáfora de toda a corrida política que se estenderá por quase duas horas na tela.
Pierre Schöller guia a história com a magnitude de um mestre. Em primeiro lugar, sua direção de atores é pontualíssima, atingindo todos os aspectos dos que aparecem em cena. O resultado disso é um elenco inteiro em atuações admiráveis, feito raro em tempos canastrice, como os nossos. Em segundo lugar, seu roteiro é tão bem escrito, que consegue formar uma unidade socialmente cíclica e quase perfeita, sofrendo apenas os mínimos males de uma história com tantas faces para ganhar espaço. Por fim, a falsa inconclusão do filme nos fornece dois caminhos de interpretação, mas o destaque para o Ministro simbolicamente devorado pelo jacaré do Estado é uma marca que nos acompanha mesmo após os créditos finais.
O Exercício do Poder é um exemplo fascinante de adaptação ao meio e de funcionamento da política. Num caminho próximo ao que George Clooney trilhou em Tudo Pelo Poder (2011), Pierre Schöller não se furta em denunciar apresentando acontecimentos e nunca interferindo diretamente com conceitos literais jogados na tela. A diferença entre os dois filmes está no extremo apuro estético da fita francesa, que termina por selar o destino da obra: com um tema considerado intragável por muita gente, o filme ainda traz música minimalista e escrupulosamente usada, além de uma montagem que alterna momentos de muita rapidez e de languidez plena (com uma cena digna de ser considerada genial: a ligação móvel entre a pista onde acontece o acidente com o carro de Bertrand e o seu escritório). O Exercício do Poder é sim um filme para poucos, mas estes poucos que o virem certamente terão uma experiência devoradora, algo ainda muito maior que um “simples” exercício de predadorismo político.
O Exercício do Poder (L’exercice de l’État) – França, Bélgica, 2012
Direção: Pierre Schoeller
Roteiro: Pierre Schoeller
Elenco: Olivier Gourmet, Michel Blanc, Zabou Breitman, Laurent Stocker, Sylvain Deblé, Didier Bezace, Jacques Boudet, François Chattot, Gaëtan Vassart, Arly Jover, Eric Naggar, Anne Azoulay
Duração: 115 min.