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Crítica | O Estrangeiro (1967)

por Guilherme Almeida
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Pouco se fala a respeito de O Estrangeiro (1967), adaptação feita por Luchino Visconti da obra-prima do filósofo Albert Camus. Quando o filme é referido, no mais das vezes discutem-se seus aspectos negativos, tais como o fato de o diretor o ter renegado, sua baixíssima circulação nos circuitos cinematográficos ou sua pretensa fraqueza e irrelevância estética. Se devemos admitir que ele realmente não configura uma grande realização artística, impõe-se também a necessidade de não o rejeitar a priori, sem darmos chances a nós mesmos de conhecermos essa obra periférica do mestre italiano. Isso porque, como ficará mais claro ao longo de minha crítica, os filmes menores podem iluminar com força inesperada pontos fulcrais da filmografia de um cineasta, às vezes de maneira mais representativa do que fazem os grandes clássicos.

Se retraçamos a trilha que percorre o protagonista Mersault, o que encontramos é uma série de eventos aos quais ele só consegue retribuir uma postura apática. Sua mãe morreu num asilo em Marengo (região da Argélia)? Não importa. Ele pode ser alçado a alto cargo no emprego e ir para Paris? Tanto faz. O que parece realmente incomodá-lo é um aspecto mais climático, o escaldante calor argelino, ressaltado por Visconti através da profusão de significantes como panos para secar o suor, abanadores, ventiladores e enfoques no sol. O mormaço enche a tela e ajuda a destacar o sentimento de não pertencimento que abate Mersault, membro de família francesa que reside na Argélia à época da dominação colonial.

Ele dorme no velório de sua mãe e se enche de enfado durante o enterro. No mesmo dia, reencontra sua antiga colega de trabalho Marie Cardona (Anna Karina), por quem se enamora e com quem toma divertidos banhos de mar e assiste uma comédia no cinema. Nenhum vestígio de luto, nenhuma tristeza explicita- o protagonista chega inclusive a concluir que após o falecimento da familiar é como se tudo continuasse como sempre foi. O estilo literário de Albert Camus, bem recriado por Visconti, promove a secura e o esvaziamento dramático mesmo da mais trágica das ocorrências. Não há melodrama rocambolesco, nem choro nem vela, só a vida em sua cruel dureza absurda e fortuita.

O mundo de Mersault vem abaixo quando ele vai para a praia com Marie e com Raymond (Georges Géret), um conhecido seu, cafetão e violento. Lá, um grupo de árabes quer atacar Raymond, por este ter agredido uma mulher aparentada a eles. E eis que, de repente… Mersault dispara quatro tiros em um dos membros do grupo, sem aparentemente ter planejado o assassinato. Acaso súbito que irrompe inesperadamente, a violência é ainda mais ininteligível por não ser racionalmente premeditada.

O protagonista é preso e aguarda o julgamento que decidirá a pena de morte. Relembro aqui a crítica que escrevi a respeito do filme A Vida de Emile Zola (1937), no qual figura uma notável cena de tribunal em que Zola deslinda um discurso loquaz e tocante, defendendo-se magistralmente. A postura de Mersault é justamente a oposta: laconismo, desinteresse e alienação. Em vez da retórica inflada e eloquentemente moldada, duas frases irrisórias: “Eu não queria matar o árabe” e “Foi culpa do sol“. Vemos aqui um personagem de consciência atrofiada, com pouco controle de seus próprios atos e sem nortes existenciais bem definidos; um personagem a la Camus, preocupado em problematizar o mal-estar no mundo moderno, resultado da morte histórica de Deus e da ruína de certezas até então bem constituídas. Um mundo moderno, pois, balizado pelo absurdo, pelo sentido abstraído aos fatos, conturbado e em estágio de anomia.

Fiz referência ao estilo de Camus para encaminhar o que considero ser o traço semiótico mais interessante deste filme. O filósofo franco-argelino prima pela condensação dos recursos narrativos, procedimento que tem como consequência uma objetividade estilística pouco palatável. Visconti dá espaço a esse timbre seco por meio da voz em over do narrador Mersault e da interpretação intencionalmente escassa de Mastroianni. Mas ele não para por aí. É possível perceber em O Estrangeiro a convivência de dois vieses narrativos, um mais aproximado ao cariz camusiano, o outro mais afeito ao gosto de Visconti. A câmera faz os típicos zooms que recheiam a filmografia do diretor; no caso específico desse longa, ela acrescenta uma ênfase não presente no original literário, como a apontar explicitamente que a releitura feita da obra de origem não se deu sem mediações autorais. Essas duas posturas, materializadas como duas formas distintas de olhar o mundo, convivem, entretanto, com grande harmonia, sem desnudar qualquer dissonância aberrante.

Coabitação pacífica, sim, mas que ao mesmo tempo destaca, por contraste, o que há de próprio na direção de Visconti. A postura enfática da câmera em O Estrangeiro é uma espécie de remédio contra o niilismo de Mersault. Os enfoques exagerados e os movimentos que salientam hiperbolicamente pessoas e objetos operam não apenas uma retomada de caracteres próprios ao estilo do diretor como postulam, eles também, um conjunto de valores filosóficos — a saber, a recusa à isenção frente o mundo, a afirmação de um pathos afetivo e interessado. Era a isso que me referia quando sugeri, no início deste texto, que esse filme menor e menos pretensioso consegue curiosamente aclarar muito do projeto estético de seu diretor. Resta evidente que essa obra não alcançou a maestria de um Rocco e Seus Irmãos (1960) ou O Leopardo (1963). É aconselhável, porém, agir tal como faz Visconti: conferir ao longa a devida ênfase para que a indiferença não escamoteie o que possa nele haver de interessante.

O Estrangeiro (Lo Straniero)- Itália/França, 1967.
Direção: Luchino Visconti
Roteiro: Luchino Visconti, Suso d’Amico, Georges Conchon e Emmanuel Roblès (baseados na obra original de Albert Camus)
Elenco: Marcello Mastroianni, Anna Karina, Georges Wilson, Bernard Blier, Alfred Adam, Georges Géret, Jacques Herlin, Mimmo Palmara, Bruno Cremer.
Duração: 104 minutos.

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