Inserida sem alarde na grade do Netflix, a minissérie de produção francesa O Espião, com Sacha Baron Cohen em papel dramático, conta a história verdadeira de um judeu nascido no Egito que é infiltrado pelo Mossad na Síria recém-saída da união com o Egito, em 1961. Com apenas seis episódios e valendo-se de uma fotografia estilosa, a criação de Gideon Raff, de Prisioneiros de Guerra (Hatufim), que deu base a Homeland, é uma série que tem seus bons momentos, uma atuação sólida no papel principal, mas que resulta em uma estrutura batida de criação de tensão que está presente em basicamente toda a obra do gênero, sem que, aqui, haja qualquer frescor.
Claro que o primeiro elemento que chama a atenção do espectador é Sacha Baron Cohen em um papel dessa natureza. Se mesmo em filmes dramáticos ele sempre fez caricaturas de personagens, é impressionante ver como ele consegue mergulhar em seu personagem Eli Cohen a ponto de desaparecer nele, isso depois que alguns vários minutos de aclimatação se passam para que esqueçamos que aquele que está ali na tela não é o Borat, o Brüno ou o Ali G. E realmente não é, pois o ator, assim como é capaz de assumir de verdade os papeis mais ridículos, ele consegue fazer o seu próprio espião sem demorar para nos convencer que seu personagem tem uma determinação até mesmo perigosa em querer mostrar-se o melhor no que faz, arriscando-se muito mais do o normal e, por isso mesmo, conseguindo resultados importantíssimos em relativamente pouco tempo.
Essa obsessão de Eli é o ponto-chave da minissérie e o que a diferencia das demais do gênero. Se espiões infiltrados são normalmente vistos como pessoas frias, determinadas e obedecedoras de regras detalhadas para não colocar seu disfarce em risco, aqui ele é como aquele jovem recruta que faz as maiores barbaridades para mostrar o quão é bom. Mal comparando, é como Maverick em Top Gun. Vemos um pouco da origem dessa sua obsessão quando, logo no começo da série, percebemos que muito claramente se vê como um judeu “inferior”, por ser um imigrante em Israel e por ninguém conhecer o seu passado heroico no Egito, algo que ele também não se esforça em transmitir. São seus arroubos de ação “fora do script” que compõem grande parte das sequências tensas da minissérie que, porém, invariavelmente são cenas em que ele busca fotografar documentos e/ou escutar conversas em ambiente completamente hostil e na base do improviso, para absoluto desespero de seu treinador Dan Peleg (Noah Emmerich). Uma ou duas vezes a coisa funciona, mas a repetição cansa.
Além disso, esse lado obsessivo de Eli Cohen, assim como os efeitos disso para Dan (Emmerich está incrível aqui, com tiques nervosos em um crescendo de se aplaudir) não são estudados psicologicamente mais do que o minimamente necessário para justificar as ações e reações. Quando a minissérie ensaia em trabalhar mais a perda de personalidade de Eli em razão de seu mergulho profundo na persona árabe do milionário Kamel Amin Thaabet, criada para ele, a obra pega atalhos e encurta a jornada, logo chegando a seu encerramento. Nesse tocante, a fotografia de Itai Ne’eman (que trabalhou com Raff em Prisioneiros de Guerra) ajuda a personificar essa dedicação e essa confusão, por assim dizer, empregando cores em toda a ação passada fora de Israel, mas dessaturando-as ao ponto de chegar próximo do preto-e-branco sempre que vemos Israel, seja com ou sem Eli, como se o mundo falso em que ele vive fosse mais real que o mundo verdadeiro que ele deixou para trás. A questão é que isso fica só assim mesmo, jogado e não trabalhado com tranquilidade, com os roteiros de Raff e de Max Perry privilegiando elipses às vezes truncadas que levam o protagonista de grande momento a grande momento, incluindo a famosa plantação de árvores que aconteceu de verdade e teve o propósito anunciado, por mais incrível que possa parecer.
Considerando que Eli Cohen não é um personagem histórico conhecido do público em geral, estranhou-me a escolha de Raff de enquadrar a série entre sequências que já o revelam como prisioneiro da Síria, telegrafando o final que ele poderá ter. Não é de forma algum spoiler, pois a cena inicial é justamente Eli Cohen preso, depois de ser torturado, escrevendo uma carta para a esposa sob o aconselhamento de um rabino. Não que uma narrativa linear fosse essencial, mas, ao trabalhar a minissérie dessa maneira, o criador, diretor e roteirista rouba do espectador um elemento de tensão extra sobre o futuro do espião, já que o que vemos no desenrolar dos episódios é, resumidamente, um longo flashback de seis anos em que o vemos ser recrutado e treinado em Israel (com direito à montagem de treinamento no estilo de filmes de ação), mandado para a Argentina via Zurique para começar a construir seu personagem e, depois, para Damasco, seus destino final.
O Espião teria se beneficiado muito mais se tivesse empregado mais tempo em uma análise psicológica da compulsão de fazer o melhor possível custe o que custar de Eli Cohen e não somente em seus grandes feitos em território inimigo, sempre com os reflexos disso para Dan e, também, para sua esposa Nadia (Hadar Ratzon Rotem). Do jeito que a minissérie ficou, ela continua tendo seu valor, claro, até mesmo para revelar ao mundo as ações destemidas de seu protagonista em uma época particularmente tensa no jogo geopolítico da região, mas não consegue realizar seu verdadeiro potencial narrativo.
P.s. Não duvido nada que essa minissérie seja transformada em série com múltiplas temporadas como tem sido moda por aí…
O Espião (The Spy – França, 06 de setembro de 2019)
Direção: Gideon Raff
Roteiro: Gideon Raff, Max Perry
Elenco: Sacha Baron Cohen, Noah Emmerich, Alexander Siddig, Hadar Ratzon-Rotem, Yael Eitan, Marc Maurille, Nassim Si Ahmed, Mourad Zaoui, Moni Moshonov, Alona Tal, Uri Gavriel, Hassam Ghancy
Duração: 319 min. (seis episódios)