Existem produções audiovisuais que, mesmo deixando transparecer claramente um espírito criativo em sua concepção, inclusive em termos de roteiro, são abaladas, ou mesmo abafadas, por fatores infelizes e bem específicos. Na constante luta da balança para se manter equilibrada entre o cunho artístico e o industrial de uma obra, um destes fatores é, com frequência, o demasiado pender do instrumento para interesses comerciais.
Tal desequilíbrio é o que se sente em O Escaravelho do Diabo, aguardada adaptação para o cinema do famoso romance policial infanto-juvenil escrito por Lúcia Machado de Almeida e publicado originalmente em capítulos na antiga revista O Cruzeiro, em 1956. Posteriormente, o livro foi incluído na Coleção Vagalume, em 1972, sendo, a partir de então, reeditado diversas vezes, contemplando gerações.
O longa, por sua vez, tem sua premissa e boa parte do seu desenvolvimento baseados na obra original: na cidadezinha de Vale das Flores (diferente do livro, no qual a cidade se chama Vista Alegre), o adolescente Hugo Maltese (Cirillo Luna) é encontrado morto pelo irmão Alberto (Thiago Rossetti), com uma espada cravada no peito. Não demora para que outros assassinatos misteriosos sigam-se a esse na pequena cidade e Alberto acaba descobrindo que não só todas as vítimas são ruivas legítimas, mas que pouco antes de morrerem receberam uma caixa, por encomenda, contendo um escaravelho. Alberto, então, propõe-se a unir forças com o delegado Pimentel (Marcos Caruso) para capturar o assassino de seu irmão.
O detalhe que mais prejudica a adaptação é que, diferente do livro, no qual Alberto tem quase a mesma idade do irmão e é estudante de medicina, no longa o protagonista é um pré-adolescente, nos seus doze anos. A pergunta é: por que um adolescente que não deixou de atrair crianças no livro, tanto quanto jovens e adultos, deixaria de fazê-lo também no filme? Ora, uma coisa é a idade do personagem, outra é a linguagem, o formato narrativo e a classificação do público para tal formato. O roteiro do longa, porém, parece confundir essa diferença entre as idades de personagens e de público e não atende tão bem quanto poderia nem aos mais jovens, nem aos mais velhos. Inicialmente, a figura de Alberto desenha-se convincentemente: um menino dado como hiperativo, falador e meio só, meio sabichão, mas ainda como uma típica criança em sua fase transitória. Com a morte do irmão, mostra-se por demais chocado e desorientado à frente do delegado Pimentel, talvez o melhor momento do filme em termos de tensão — vivas à ótima performance de Rossetti, que parece por demais à vontade em cena.
Os problemas começam, contudo, quando Alberto se revela, de um momento para o outro, dono de um instinto investigativo que, não direi não ser compatível com a idade dele, mas que o roteiro não busca construir situações anteriores que nos convençam de que o garoto seria, de fato, capaz de possuí-lo. Um garoto que de repente torna-se dotado a ponto de invadir a casa de uma vítima sem que nenhum policial perceba, que por acaso encontra lá um escaravelho igual ao que seu irmão recebeu e que pensa, também sozinho, em buscar pelo nome científico do besouro, em vez de simplesmente mostrá-lo ao delegado e dizer que Hugo recebera um idêntico… e por aí vai. A cena mais icônica, contudo, é aquela na qual o delegado não parece se importar em levar o menino até uma igreja incendiada e permitir que ele se meta no meio da destruição. Ou seja, muda-se a idade mas não concilia-se o roteiro às implicações de tal mudança, ao mesmo tempo que certas cenas acabam parecendo pesadas demais, apesar da preocupação da equipe criativa em atrair crianças para o cinema.
Não que o roteiro, mesmo com este e outros equívocos como desperdiçar, em parte, o mistério acerca da identidade do assassino ao fazê-lo ficar monologando em off, se esforça e até tem uma ou outra boa sacada, principalmente a de conferir um problema de saúde ao delegado, também ótimo na pele de Caruso, que contrasta perfeitamente com sua profissão e ajuda a torná-lo um personagem marcante, sobretudo mais humano; ao contrário do livro, onde encontramos figuras tão carentes de emoção palpável. Também a relação de Alberto com o irmão é explorada com mais dedicação do que no livro, mas tal preocupação logo se perde de vista mediante aos crimes seguintes.
Fora isso, a adaptação segue a trilha de crimes e sua conclusão satisfatoriamente em relação ao livro, adequando um ponto ou outro à época presente, com uma trilha original discreta e também satisfatória, embora suas letras soem demasiadamente surreais ou darks para o formato escolhido. Se mais preocupada em definir seu formato narrativo do que apenas em como atrair o público pretendido, a produção poderia se firmar como um suspense até mais digno do que o livro para crianças e adultos. Ao contrário do livro, contudo, o filme logo será esquecido.
O Escaravelho Do Diabo (Brasil, 2016)
Direção: Carlo Milani
Roteiro: Melanie Dimantas, Ronaldo Santos (baseado em obra de Lúcia Machado de Almeida)
Elenco: Thiago Rosseti, Bruna Cavalieri, Marcos Caruso, Jonas Bloch, Lourenço Mutarelli, Celso Frateschi, Selma Egrei, Augusto Madeira, Isaac Bardavid, Ana Cecília Costa
Duração: 90 min.