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Crítica | O Encanador

Peter Weir trafegando entre gêneros e estilos.

por Ritter Fan
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Depois de começar sua carreira de diretor de longas com um “filme automobilístico” de maneira parecida com a de seu conterrâneo e contemporâneo George Miller, Peter Weir encabeçou duas obras tematicamente semelhantes que reputo magníficas, Piquenique na Montanha Misteriosa e A Última Onda, a primeira muito bem recebida na Austrália e no exterior, mas a segunda nem tanto. Com vida de cineasta em início de carreira não é fácil e ele tinha que pagar suas contas – isso é ele mesmo quem afirma -, ele acabou aceitando escrever e dirigir um telefilme parte de uma encomenda de três que o Channel Nine, canal de TV aberta, tinha encomendado de uma empresa pública australiana. O resultado foi O Encanador que originalmente passou na televisão por lá, mas que, em alguns países do mundo, como nos EUA, foi distribuído nos cinemas, ainda que em escala bem modesta.

Trata-se de uma obra minúscula em escopo e orçamento na filmografia de Weir, com elenco de novelas da época, mas uma que deixa evidente a versatilidade do cineasta e sua capacidade de se adaptar a qualquer situação sem deixar que seus temas preferidos sejam abordados, mesmo que eles fiquem apenas no pano de fundo. A premissa é enganosamente singela: um encanador chega sem ser chamado no apartamento de um complexo universitário em que vive um casal e o caos começa. Jill (Judy Morris) é a esposa e mestranda que estuda e pesquisa o dia todo no apartamento para escrever sua tese e Brian (Robert Coleby) é o marido que trabalha fora e que tem chances de conseguir uma transferência para a Suíça. Max (Ivar Kants) é o encanador falastrão que passa a visitar o apartamento diariamente para fazer seus consertos no banheiro.

O jogo que Weir joga é muito interessante e repleto de “bolas curvas” que mantém o espectador constantemente na dúvida primeiro sobre Max e, depois, sobre as intenções de Jill. No caso de Max, Weir o apresenta como um potencial criminoso, sem mostrar seu rosto e indicando logo de início que a escolha do apartamento de Jill é aparentemente aleatória. Depois que ele já está lá dentro, as insinuações de que algo está muito errado são intensificadas, seja pelo quanto Max se intromete na vida de Jill e o quanto ele se aproxima dela, seja pelas diversas indicações – a página do Kama Sutra no banheiro, um ídolo de fertilidade de uma tribo indígena com um órgão genital particularmente grande – de que Max  está lá para fazer o pior com Jill. Mas Weir também muda o jogo durante a partida e também trabalha a presença de Max como algo extremamente inconveniente, sem que o encanador tenha a menor noção do que está fazendo e do quanto o que ele fala, escuta (ele toca música alta enquanto trabalha!) e faz impede Jill de pesquisar e escrever. E o tom absurdista da narrativa só vai aumentando, com Kants navegando muito bem as diversas facetas de seus personagem.

A atmosfera claustrofóbica que a cenografia invoca é dramática e ao mesmo tempo realista dentro da estrutura que oscila entre a seriedade e a comicidade, com momentos que resvalam no surreal, funcionando muito bem para cuidadosamente construir outro aspecto relevante do filme: o quanto a presença de Max ali tão próximo muda a forma como Jill vê seu próprio marido e ela mesma, sozinha, sexualmente largada por seu companheiro. É um subtexto muito interessante que Weir faz questão de manter presente, mas de maneira muito discreta e delicada, provavelmente para evitar censura alta para uma obra destinada à TV aberta. As alterações comportamentais em Jill são, porém, centrais ao longa, com Judy Morris acertando em cheio em seu papel desafiador que transita da “mulher recatada e do lar” para algo bem mais apimentado, mas sem que seja necessário que o diretor recorra a vulgaridades para construir essa tensão.

Nessa mesma toada, o tema do conflito entre colonizadores e aborígenes na Austrália que Weir preza e tratou em seus dois filmes anteriores ganha destaque, mesmo que não seja elemento central à narrativa. Jill, como antropóloga, estuda as tribos indígenas e muito do que gravita em sua pesquisa relaciona-se com o povo originário da Austrália. No lado de Brian, que trabalha no ramo da saúde, vemos sua pesquisa e seus comentários sobre os efeitos nefastos tanto físicos quanto culturais do fast-food nos aborígenes. Tudo isso fica em segundo plano, mas está presente e dão estofo e contexto à presença do casal no apartamento universitário em que vivem. E, como se isso não bastasse, há uma bem colocada – ainda que de maneira mais óbvia – discussão sobre a luta de classes, algo que Max levanta diversas vezes por ser alguém sem educação com um emprego considerado por muitos intelectuais como “menor” e pouco importante.

O Encanador tem, portanto, diversas camadas. Pode ser visto como um exercício de estilo com Weir fazendo uso de suas ferramentas fílmicas para transitar entre gêneros e deixar o espectador permanentemente em dúvida sobre Max, mas também pode ser visto como algo mais, como uma crítica social sobre a intransponível diferença de classes sociais, sobre o relacionamento de um casal que parece andar no fio da navalha e sobre a libertação sexual de uma mulher confinada ao seu apartamento e aos seus estudos. O não muito longo longa pode ser “apenas” um telefilme em sua origem, mas Peter Weir definitivamente entregou muito mais do que apenas entretenimento barato e descartável.

O Encanador (The Plumber – Austrália, 1979)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Peter Weir
Elenco: Judy Morris, Ivar Kants, Robert Coleby, Candy Raymond, Henri Szeps
Duração: 76 min.

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