O tema do duplo é um dos mais recorrentes na cultura Ocidental e um dos mais ricos de serem trabalhados pelas artes dramatúrgicas ou pelas várias mídias audiovisuais. Tendo como base a obra homônima do escritor Fiódor Dostoiévski, lançada em 1846, “o duplo” se tornou motivo de estudos psicológicos (Freud, Jung) e fonte direta ou indireta para inúmeras adaptações televisivas e cinematográficas, além de servir de inspiração para outros grandes escritores (vide O Homem Duplicado, de José Saramago), criarem elementos de quebra comportamental, psíquica e social partindo de um protagonista atormentado.
Em O Duplo (2013), o cineasta Richard Ayoade visita o universo de Dostoiévski dando atenção para os elementos cênicos abordados no livro e para as características da outra personalidade do infeliz personagem. Jesse Eisenberg vive Simon e James, dois jovens que, segundo a lógica da obra literária e o intento da presente adaptação, deveriam apresentar uma completa dissociação de personas. Embora o ator esteja razoavelmente aceitável em sua versão conquistadora, agressiva, confiante e extrovertida, o espectador está diante de uma “semi-cópia” do jovem original, não de uma versão dissociada. Tanto um quanto outro parecem perdidos no mesmo espaço aterrador. Vestir a mesma roupa e ter uma aparência que só se destaca diante das poucas expressões faciais do ator também não ajuda. Nesse sentido, a versão de Bertolucci para a mesma obra, Partner (1968), possui mais ganhos.
Além da falha de concepção para o núcleo da obra (a criação do duplo), o roteiro tropeça parcialmente na tentativa de manter a dúvida em relação ao “estranho”. Apenas do meio para o final, quando aos poucos, o introspectivo e passivo jovem do início tenta tomar as rédeas de uma situação que ele não mais controla, é que a dúvida aparece. O diretor, nesse ponto, consegue um resultado agradável em termos dramáticos, mas esse aspecto chega tarde demais. Enquanto sua visão introdutória para o personagem é muito bem realizada — o início do filme firma o caráter do protagonista para em seguida mostrar sua reação à chegada do “homem relevante” que ele não consegue ser — o final deixa a desejar na conclusão desse conflito. É como se tivéssemos diante de um ótimo cenário de ações humanas em um primeiro momento e, no decorrer da trama, nos víssemos girando em torno de um abismo que ao cabo se revela apenas isso mesmo: um abismo.
O verdadeiro ganho de O Duplo, no entanto, está em três aspectos técnicos, aqui postos em ordem de relevância e excelência: direção de arte, fotografia e trilha sonora. No primeiro, a composição de ordem Steampunk é digna de aplausos. Ela não só funciona como um corpo fechado em si mas serve de caracterização perturbadora para o personagem central e seu duplo. Existem fortes marcas de Brazil: O Filme e motivos kafkianos e oníricos que são ressaltados pelos bem ordenados filtros fotográficos de Erik Wilson (que já havia trabalhado com Ayoade em Submarino, 2010) e pela crescente perturbação ritmada pela trilha sonora, elogiável não só pelo tom obscuro das peças mas pelo inteligente uso de instrumentos solos e modulações em crescendo ou piano para cada evento marcante. Embora o diálogo interior não seja visto de forma intensa na concepção do personagem — a já pontada falha do roteiro na concepção do duplo –, a música acaba tomando para si esse papel e o exerce muito bem.
Estiloso e interessante a maior parte do tempo, O Duplo é um exercício de busca e desencontro interior de um personagem difícil de se representar, mas cuja riqueza gera ótimas discussões e interpretações. Jesse Eisenberg tem parcial sucesso em sua interpretação (apenas um de seus personagens aparece bem na tela, mas mesmo assim, não é nada demais) e Mia Wasikowska está bem localizada na trama, embora eu não veja nenhuma justificativa plausível para ela ser “normal” em um cenário onde não cabiam pessoas assim. Richard Ayoade entrega aqui um visualmente atrativo drama psicológico mas, infelizmente, falha ao desenvolver e concluir sua parte essencial.
O Duplo (The Double) — EUA, 2013
Direção: Richard Ayoade
Roteiro: Richard Ayoade, Avi Korine (baseado na obra de Fiódor Dostoiévski)
Elenco: Jesse Eisenberg, Mia Wasikowska, Wallace Shawn, Yasmin Paige, Noah Taylor, James Fox, Cathy Moriarty, Phyllis Somerville, Gabrielle Downey, Jon Korkes, Craig Roberts, Kobna Holdbrook-Smith
Duração: 93 min.