Presente na cultura desde os anos 1990, Bridget Jones saiu das páginas dos jornais e da literatura e ganhou suas versões cinematográficas, travessia entre suportes que ajudou na popularização da personagem. Ela é, em meu ponto de vista, uma daquelas que fazemos uma visita de vez em quando, pessoa muito querida, mesmo que não esteja enraizada em nosso cotidiano. Li isso numa crítica na época do lançamento do primeiro filme e até hoje faço essas associações. Toda ocasião de reencontro, por sua vez, observamos que o cenário muda, mas alguns posicionamentos continuam por lá, cristalizados, afinal, é parte daquilo que chamamos de essência do outro. Muda-se algo ali, ajusta-se algo aqui, mas Bridget Jones continua sendo a mesma atrapalhada, insegura, narradora voraz de seu diário, numa existência que salvaguardadas as devidas proporções, lembram muitas das coisas que integram o nosso cotidiano e, nalgumas vezes, são tópicos levados para quem faz terapia. Eu, particularmente, não sou fã do formato diário, mas confesso que, mesmo assim, considerei O Diário de Bridget Jones mais do que um simplesmente um romance divertido: o livro é uma reflexão perspicaz sobre a vida da mulher moderna, abordando temas como amor, identidade, autoestima e a busca pela felicidade, escrito numa perspectiva muito honesta e humorada.
Helen Fielding oferece uma representação rica e complexa das lutas e vitórias das “mulheres” (não todas, obviamente), num texto onde nós leitores somos incentivados a abraçar suas imperfeições e a celebrar suas jornadas pessoais na forma de um diário, o que proporciona uma visão íntima da vida da protagonista, Bridget Jones. Situado em Londres, no final dos anos 1990, a publicação reflete as ansiedades e as aspirações das mulheres dessa época, abordando temas como relacionamentos, independência e a busca por identidade. Essa estrutura em forma de diário permite que os leitores acompanhem os pensamentos mais íntimos de Bridget, algo que a tornou uma personagem incrivelmente identificável. O tom humorístico e autodepreciativo de Bridget cria uma conexão imediata com o leitor, enquanto suas falhas e inseguranças apresentam uma visão realista das pressões sociais enfrentadas pelas mulheres. O estilo é despretensioso e coloquial, o que facilita a aproximação do público.
A protagonista, uma mulher de 30 e poucos anos, solteira e em busca de um relacionamento, é divertida, franca e muitas vezes se sente insegura em relação ao seu corpo, à sua carreira e aos seus relacionamentos. Essa vulnerabilidade, acompanhada de um humor ácido, faz com que ela se torne uma representação autêntica de muitas mulheres contemporâneas que balançam entre expectativas sociais e realidades pessoais, antecipando ansiedades que se tornaram ainda mais veementes nas três últimas décadas após a sua publicação, a era dos relacionamentos desenvolvidos no conflituoso universo dos aplicativos e em nossas existências muitas vezes mediadas por redes sociais. Em O Diário de Bridget Jones, a autora aborda a luta de Bridget para encontrar sua identidade em um mundo que muitas vezes define o valor de uma mulher por seu estado civil e sua aparência física. Ao longo do diário, Bridget reflete sobre sua luta com o peso, sua vida amorosa e a pressão para se conformar diante de ideais de sucesso.
Sua autoimagem é frequentemente abalada por comparações sociais, mas, ao longo da narrativa, ela começa a aceitar suas imperfeições, refletindo o tema da autoaceitação e da verdadeira beleza que existe além dos padrões convencionais. As relações de Bridget, especialmente com seus interesses amorosos Mark Darcy e Daniel Cleaver são centrais para o enredo. A dinâmica entre esses personagens ilustra as nuances amorosas que muitas mulheres enfrentam. Enquanto Daniel representa o tipo de romance superficial e volúvel, Mark se destaca como um amor genuíno e respeitoso. O desenvolvimento da relação de Bridget com Mark também levanta questões sobre o que constitui um relacionamento saudável e autêntico, enfatizando a importância do respeito mútuo e da compreensão, num trajeto de crônicas diárias onde Fielding utiliza a comédia para explorar e criticar questões sérias, como a pressão social sobre as mulheres para serem bem-sucedidas em suas vidas pessoais e profissionais.
As cenas cômicas e os deslizes de Bridget não apenas entretêm, mas também oferecem uma crítica subjacente às expectativas irreais que a sociedade impõe às mulheres. Ao fazer isso, Fielding permite que os leitores reflitam de maneira leve sobre questões que poderiam ser pesadas ou opressivas. Mesmo não sendo incrivelmente fluente como o seu filme, O Diário de Bridget Jones na literatura se tornou um fenômeno cultural, inspirando um novo subgênero literário e uma série de adaptações cinematográficas de sucesso. A personagem de Bridget ressoou com muitos leitores ao redor do mundo e ajudou a popularizar a ideia de que as mulheres podem ser protagonistas de suas próprias histórias, lidando com seus desafios de maneira humorística e auditiva, ao invés de serem meros objetos das narrativas românticas tradicionais. A obra ganhou ressonâncias subsequentemente em muitas autoras e histórias focadas em mulheres, marcando uma mudança na literatura contemporânea.
O Diário de Bridget Jones é caracterizado pela crítica literária como um dos precursores do chick lit, termo utilizado para descrever um subgênero da literatura que geralmente se concentra em narrativas voltadas para o público feminino, abordando temas como relacionamentos, carreira, amizade e sexualidade, muitas vezes com um tom leve ou humorístico. Embora o chick lit tenha ganhado popularidade e uma base de fãs significativa, o uso do termo pode ser considerado preconceituoso por diversas razões. Tudo bem que as 286 páginas do romance em formato de diário não podem ser consideradas como uma obra-prima da literatura, mas algumas determinações dos especialistas em torno do subgênero acabam por desvalorizar os significativos pontos abordados na concepção desse tipo de história que tal como qualquer outra, não reflete apenas aparatos estéticos, mas também espelham o contexto social de onde se originam.
Em primeiro lugar, essa denominação reduz a complexidade temática das narrativas em questão, pois chick lit é muitas vezes desvalorizado como uma forma de “literatura superficial”, sugerindo que as histórias são meramente sobre romances e fofocas. Esta percepção reduz a complexidade e profundidade que muitas obras desse gênero podem ter, ignorando temas como empoderamento, autodescoberta e crítica social que podem estar presentes nas narrativas. Isso implica que as preocupações e experiências das mulheres são menos significativas ou validas apenas por serem focadas no cotidiano e nas relações. Segundo, cria estigmas em torno dos gêneros direcionados ao público feminino, ao perpetuar a ideia de que a literatura destinada a mulheres é inferior ou menos séria do que a literatura mais convencional ou “masculina”. Isso reflete uma dinâmica de gênero que desvaloriza as experiências e perspectivas femininas, contribuindo para a marginalização de autoras e suas obras.
Ademais, a classificação chick lit pode reforçar estereótipos associados às mulheres, como a noção de que a literatura feminina é voltada apenas para questões superficiais, como moda, beleza ou relacionamentos amorosos. Isso desconsidera a variedade de vozes e estilos de escrita dentro do gênero, além de ignorar a seriedade e a profundidade emocional que muitos romances de chick lit exploram, numa limitação dos temas femininos, pois o uso desse termo pode sugerir que a experiência feminina é monolítica, desconsiderando as diversas vivências, raças, orientações sexuais e classes sociais das mulheres. O chick lit pode abordar uma ampla gama de experiências, mas o estereótipo associado ao gênero pode limitar a maneira como essas histórias são recebidas e compreendidas em um contexto mais amplo. Sendo bem honesto, o estilo diário adotado por Helen Fielding não me atrai, pois sinto que o avanço da ação breca constantemente, mas a tradução de Beatriz Horta na edição veiculada pela Companhia das Letras permite que o formato ganhe um desenvolvimento aceitável em língua portuguesa.
Desse livro, Bridget Jones conquistou as telas do cinema e muitos leitores, se tornando também uma financeiramente bem-sucedida série de romances, também levados para a linguagem audiovisual. Muito da identificação com a Sra. Jones, na literatura e no discurso cinematográfico, vem da representação que essa personagem estabelece sobre determinadas mulheres modernas em sua busca pelas palavras-chave amor e felicidade. Ela é uma personagem que rompeu com muitos estereótipos tradicionais, apesar de no processo, acabar retroalimentando outros, mas nada que seja excessivamente problemático, comprovando que as mulheres podem ser complexas e engraçadas, numa celebração da vulnerabilidade comum a qualquer ser humano, dotado de ânsias, imperfeições, inseguranças, dentre outras coisas. Jones encapsula as lutas e triunfos de muitas mulheres contemporâneas por meio de sua autenticidade e autoaceitação, um símbolo de resiliência e humor diante de contextos que envolvem tantas adversidades.
Conhecer a dinâmica da publicação é também compreender o lugar de Helen Fielding no campo literário britânico. Antes de se tornar uma escritora, Fielding trabalhou como jornalista e roteirista, o que influenciou sua habilidade de contar histórias de uma forma acessível e envolvente. Seu trabalho inicial incluiu colaborações em publicações como The Independent e The Sunday Times, tendo a fama alcançada ao configurar Bridget Jones como um personagem em 1996. Os escritos de Fielding são frequentemente caracterizados por seu tom humorístico, personagens identificáveis e uma análise perspicaz das questões femininas. O uso do diário como forma narrativa permite que os leitores se conectem intimamente com a psicologia da protagonista, criando uma empatia instantânea. Os temas das inseguranças cotidianas, da sexualidade feminina e da busca por identidade emocional são comuns em suas obras, refletindo experiências que muitos leitores podem vivenciar. O sucesso de O Diário de Bridget Jones levou a uma sequência em 1999, Bridget Jones: No Limite da Razão, história que continuou a trajetória de Bridget em um tom semelhante de humor e autodescoberta, mas sem a mesma qualidade literária do ponto de partida, o que resultou em uma continuação cinematográfica igualmente irregular.
O filme de 2001, protagonizado por Renée Zellweger como Bridget, inspirado no livro aqui analisado, se tornou um ícone na cultura pop e destacou a relevância dos desafios enfrentados pelas mulheres na vida moderna. Tivemos ainda O Bebê de Bridget Jones e, em 2013, Fielding publicou Bridget Jones: Louca Pelo Garoto, publicação que nos apresenta a protagonista em uma nova fase em sua vida, agora mais madura e enfrentando novas realidades. Na publicação, a autora traz uma nova perspectiva sobre a vida de mulheres de meia-idade, explorando temas como a maternidade, a perda e a reinvenção pessoal. O retorno à personagem principal foi bem recebido e reforçou a relevância contínua de Bridget Jones como uma representação da mulher contemporânea. Mesmo com seus altos e baixos literários e cinematográficos, a série não apenas entreteve, mas também gerou uma discussão mais ampla sobre o papel das mulheres na sociedade moderna.
O Diário de Bridget Jones (Bridget Jone’s Diary) — Reino Unido, 1996
Autor: Helen Fielding
Edição lida para esta crítica: Companhia das Letras (2016)
Tradução: Beatriz Horta
286 páginas