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Crítica | O Diabo, Provavelmente

O humano, acertadamente.

por Kevin Rick
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Algum dia você já se deparou com “ativismo silencioso”? Não faz muito sentido, né? Ativistas são participantes dinâmicos de suas determinadas causas. Muitas das vezes defensores incansáveis de seus ideais. Claro que existe o ativismo falso, especialmente hoje em dia com os partidários superficiais da internet. Mas a essência do ativismo não poderia ser mais distante do silêncio. Bem, ninguém disse isso para Robert Bresson.

Em O Diabo, Provavelmente, penúltimo longa-metragem do cineasta francês, o artista apresenta um grupo de jovens que rejeita o mundo corrupto e tóxico do capitalismo em um momento de grande crescimento econômico no final dos anos 70, com uma sociedade recuperada das despesas das guerras mundiais e olhando em direção à globalização em meio ao conflito de filosofia política da Guerra Fria. E como nós já sabemos hoje em dia, o capitalismo é uma máquina que está destruindo o meio ambiente. Assim, antes de qualquer coisa, é preciso notar o quão visionário Bresson é neste filme, discutindo problemas ambientais em um período que o discurso anti-guerra estava em foco, e não tanto ambientalismo.

Nesse sentido, O Diabo, Provavelmente é quase um filme de horror. Não de gênero, mas de realismo. Os momentos mais poderosos deste terror tão próximo da nossa realidade atual estão nos slides e imagens de documentário sobre poluição, destruição ambiental e crueldade animal que cercam as discussões desses ativistas juvenis. Existe uma literalidade hostil em como a montagem intercala vários momentos de desespero global com o debate sem emoção e seco da juventude revolucionária. É a partir dessas situações que vemos o tal “ativismo silencioso” que citei, conforme Bresson não traz grandes discursos ou debates calorosos. É até difícil de delinear a vertente desses garotos, se são punks, reacionários ou até vanguardistas.

O intuito do cineasta francês parece ser outro. Ele está menos investido na trama macro de demolição global, e mais focado em apresentar os dilemas internos das poucas pessoas que não aderem às indiferenças sociais. É como se ele usasse o ativismo para discutir existencialismo – o que é a cara do Bresson! -, considerando que o nosso protagonista, Charles (Antoine Monnier), passa o filme todo refletindo sobre a inutilidade de suas ações e a aparente condenação do mundo. Há um compromisso dramático com essa sensação de opressão pessimista, no qual Bresson dilui política, religião, ideologia, drogas e psicanálise com sutileza e desesperança em seu coming-of-age deturpado. E o cineasta se torna uma espécie de ativista silencioso com sua digressão pela crítica ao corporativismo.

No entanto, Bresson também cria uma linha visual alegre, mas quase imperceptível – especialmente para seus jovens burgueses em conflito. Paradas de ônibus, encontros amorosos no vale, uma caixa de chocolates jogada em uma rua movimentada e pequenos gestos que nos absorvem em uma poesia do ordinário e do cotidiano. Como típico da sua filmografia cadenciada, o cineasta usa ritmo, imagens e som ambiente para construir um universo espiritual com o minimalismo e a progressão lenta. A minha leitura parte do posicionamento que Bresson queria evidenciar uma beleza diária que os pensamentos dessa geração conflituosa nublavam ou/e para evidenciar a hipocrisia e egoísmo de algumas de suas escolhas considerando sua realidade erudita.

Tenho, no entanto, problemas com a estrutura narrativa de O Diabo, Provavelmente. Mesmo que o foco seja a pessoalidade e o drama íntimo de Charles, o fato de que Bresson progressivamente se distancia da linha macro das questões de poluição e destruição ambiental, retira a força da base dramática da obra. O ótimo teor crítico se esvai bastante na reta final, retirando qualquer tipo de intuito catártico – sempre intencional para o cineasta. E, além disso, mesmo com a parte formal do cotidiano de Charles e companhia sendo poesia visual, o conteúdo não é exatamente cativante. Bresson tem dificuldade em extrair drama de sequências sobre vício ou romance, ironicamente nos deixando indiferentes a seus personagens e suas dinâmicas.

Em última análise, O Diabo, Provavelmente é um filme extremamente reflexivo com seus dilemas internos, tematicamente visionário e denunciador em seus silêncios, mas não sinto a potência dramática do existencialismo de Charles como aconteceu com a garotinha em Mouchette ou a história do burro em A Grande Testemunha. Assim como os temas principais do enredo se perdem na falta de foco narrativo. Ainda assim, o flashback sobre o suicídio de um jovem é mais uma narrativa poderosa para deixar um buraco pessimista no peito do espectador, especialmente em como seus conflitos estão próximos da realidade atual. Essa destruição é provavelmente o diabo, ou tem um pezinho humano?

O Diabo, Provavelmente (Le Diable probablement) – França, 1977
Direção: Robert Bresson
Roteiro: Robert Bresson
Elenco: Antoine Monnier, Tina Irissari, Henri de Maublanc, Laetitia Carcano, Nicolas Deguy, Régis Hanrion
Duração: 95 min.

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