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Crítica | O Diabo de Cada Dia

por Luiz Santiago
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Narrativas orais fazem parte da cultura de todas as nações do mundo, com diferentes níveis de importância. Mesmo progressivamente apagado pela tecnologia e pela menor interação entre as gerações mais antigas e as mais jovens (ao menos em cenários cosmopolitas), esse estilo de contar uma história ainda consegue sobreviver no imaginário popular, pois todos nós já o vivenciamos quando crianças, entreouvindo longas conversas de adultos sobre esta ou aquela pessoa/situação; ou nós mesmos já estivemos em situações onde longas conversas de algum fundo moral nas entrelinhas foram travadas em rodas de amigos ou familiares, noite afora. Essa mitologia popular tem a capacidade de condensar e estender atos, mesclar tempos e, não raro, atravessar gerações pela narrativa. E é justamente esse tipo de conto que temos aqui em O Diabo de Cada Dia, adaptação do romance de Donald Ray Pollock, que também narra o filme.

Como em todo bom “causo“, o espectador encontrará aqui uma longa jornada que elenca tragédias e paixões humanas ao longo do tempo, com alguns núcleos desenvolvidos paralelamente, mas que pouco a pouco irão se conectar à família Russell. E o roteiro utiliza esses diferentes espaços para mostrar como os mais diversos atos de violência, às escondidas ou às claras, são cometidos, combatidos e principalmente transmitidos para os descendentes. O diretor e roteirista Antonio Campos convida o espectador a pensar sobre as guerras que moldaram cada geração (começamos o personagem de Bill Skarsgård voltando da 2ª Guerra e terminamos com a possibilidade de o personagem de Tom Holland ir lutar na Guerra do Vietnã) e como esse horror macro consegue se refigurar em uma porção de micro-guerras, afetando apenas algumas pessoas em pequenas cidades, mas nem por isso sendo menos infame.

O curioso é que justamente a escolha que dá ao filme essa aura de “lenda de outro tempo” como reflexão para que possamos entender o nosso, acaba lhe fazendo um enorme desserviço, por ser demasiadamente expositiva e utilizada de forma preguiçosa pelo diretor, como um a agulha de continuidade. Como a história atravessa diferentes décadas (cada uma muitíssimo bem representada pela equipe de figurinos), era evidente a necessidade de um recurso inteligente e dinâmico com o objetivo de fazer o espectador acompanhar as passagens e notar em cada fase as perigosas fixações dos personagens, com destaque para a fé cega ou irresponsável — lembrei-me do fanatismo abobalhado que serviu como um convite à morte para Tore, em Nada de Mau Pode Acontecer — e para os desarranjos sociais e íntimos que facilitam a proliferação desses problemas. O resultado nós conhecemos até hoje: a maioria dos criminosos sequer é responsabilizada pelo que fez e frequentemente leva pessoas muito jovens à morte.

Cada esquina da História tem o seu diabo. Nós os conhecemos por desequilíbrio mental, por psicopatia, por feminicídio e por tantos outros nomes que às vezes as narrativas populares não dizem ou não conhecem. Mas certamente já ouviram falar frases como “ela está alucinando“, ou “a culpa não é minha” e também “eu fiz isso porque ouvi a voz de Deus“. O horror parece esperar a cada indivíduo, em cada esquina, com requintes de detalhe ou simples e direta crueza para fazer o que deve fazer: o seu ato diabólico que serve como alimento para algum conhecido “pecado“, do prazer sexual à busca e manutenção do poder. De uma figura de autoridade podre como o reverendo vivido brilhantemente por Robert Pattinson ao o indivíduo que parece atravessar a vida apenas reagindo aos males que o rondam (personagem de Tom Holland, que tem uma interpretação decente aqui, mas nada tão glorioso, como ouvi dizer), parece sobrar apenas a lembrança de algo realmente bom da vida, ocorrido há muitos anos.

E talvez seja esta a grande obra do diabo em cada dia: preencher o tempo da humanidade com sangue, dor e apenas a lembrança de algo bom que provavelmente nunca mais irá voltar. A nossa sorte é a insistência na luta e o dom de trazer a esperança à mesa, como faz Arvin, na cena final do filme. Na narrativa, seu ciclo foi completado da forma como começou: violentamente, em uma ótima sequência na floresta, fechando também o arco do Xerife vivido por Sebastian Stan. O fato de Arvin estar vivo abre a possibilidade de uma mudança, da criação de uma família, de uma vitória sobre o diabo da violência que o moldou e perseguiu. Ou talvez essa seja apenas a calmaria antes da tempestade ele realmente durma… para nunca mais acordar.

O Diabo de Cada Dia (The Devil All the Time) — EUA, 2020
Direção: Antonio Campos
Roteiro: Antonio Campos (baseado na obra de Donald Ray Pollock)
Elenco: Robert Pattinson, Tom Holland, Bill Skarsgård, Haley Bennett, Riley Keough, Harry Melling, Sebastian Stan, Mia Wasikowska, Eliza Scanlen, Jason Clarke, Douglas Hodge, Drew Starkey, Given Sharp, Lucy Faust, Abby Glover, Michael Banks Repeta
Duração: 138 min.

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